Amar o futuro

O desejo de prever o futuro deve ter nascido com as primeiras experimentações racionais da nossa espécie. Há teorias que vêem nas pinturas rupestres tentativas de condicionar o que se iria passar nas caçadas dos dias seguintes. E este “condicionar” é uma das melhores formas de previsão. A leitura das entranhas, humanas e não humanas, parece também ser um acto transcultural de adivinhação, bem como a quase indústria religiosa dos bons e maus auspícios, que numa das suas formas sublimadas deu origem à arte trágica, mostrando a húbris o limite do nosso poder analítico, e, noutro campo, o prazer da punição. Somos, então, partamos desta tese, animais prestidigitadores.

Mas em todas as épocas, com mais ou menos linhas de frustração, aceitou-se a imprevisibilidade das previsões (uma boa modéstia que agora nos escapa). Matava-se o Xamã, comprovava-se a menoridade humana em relação ao Olimpo, introduziam-se variáveis contra-produtivas (uma das vantagens do politeísmo), reinterpretava-se a realidade... e concluía-se, por vezes em narrativas longas e retorcidas, que tudo não passava de um jogo, com alguma crueldade à mistura, onde se ganhava e perdia.

Diferentemente, hoje vive-se uma insaciável vontade de controlo. Somos a época mais inábil a conviver com o imprevisto. Da antevisão do tempo às grandes projecções económicas (oxalá houvesse uma húbris para os economistas charlatões), da definição da esperança de vida aos cálculos probabilísticos das apostas desportivas online, dos seguros de vida (esta forma de evitar a morte serve a boa consciência e os cofres das seguradoras) aos voos protelados para os quais se fazem novas previsões. Ou então é toda um parafernália messiânica que alimenta as missas do progresso. Em suma, disseminamos as maiores e mais sofisticadas forças narrativas e tecnológicas para que o futuro não nos escape das mãos. Podemos ver mal o presente, ignorar estupidamente o passado, mas ai de quem nos tira o controlo do futuro.

Em boa verdade, por mais tecnologia e algoritmos que tenhamos, isso não passa de uma vã pretensão, basta pensar um pouco para ver o nevoeiro que cobre o futuro, mesmo o mais próximo. Noutra via, mais espiritual, a verdade é que a humanidade não evolui, como alguns julgam, de combate em combate até ao apaziguamento final, teleologia miraculosa. Ponham-se novamente em causa as litanias do materialismo dialéctico tanto quanto o optimismo cínico burguês (coincidentes na ideia de “progresso”, neo-messianismo pós-Iluminista).

Mas não é tanto esta constatação de impotência que me interessa relatar. Quero antes denunciar as consequências éticas (no sentido do carácter individual) que esse afã prestidigitador provoca. Parece-me que elas acontecem a dois níveis: 1- perda de liberdade (quem controla controla-se, não está disponível para o novo, o seu novo); 2- apagamento de uma poética do imprevisto (tudo o que acontece já era esperado, ou pelo menos acredita-se nisso). Em suma: prever é sempre seguir a linha de uma feiticeira.

No primeiro caso estamos perante mais um processo de alienação, de auto-alienação. Quando dizemos “sei o que vou fazer, ser, ter…” bloqueamos aquilo que nos podia desviar de nós e amplificamos o que somos, o que “estamos fartos de ser”. No segundo, impedimos o rejuvenescimento, a emergência de linhas de vida que desconhecemos e que viriam enriquecer o nosso mundo. E assim, na junção destes dois elementos (próximos) reduzimos o potencial de experiências de vida, vamo-nos tornando existencialmente subnutridos, de uma simplicidade (quanto mais simples mais previsível) assustadora.

Por isso, Nietzsche só podia dizer: “Amo a incerteza do futuro.” (Fragmento Póstumo, 1881-1882).