Notas tiradas na pastelaria

Negras fúrias, negra fúria, coração, cabeça. Pensava em títulos para um novo blogue. Pensava e lia no metro, lia enquanto caminhava, lia rodeado de sovacos apodrecidos, de brutamontes habituados a cumprimentar com encontrões o cidadão introvertido. Lia algo desapontado A Death in the Family, de Karl Ove Knausgaard. Não que o livro não fosse bom, que não merecesse todos os elogios que recebeu de James Wood. Quanto maior é a expectativa, maior é a desilusão. Li o livro em dois dias, ansioso por encontrar aquilo que todos encontraram, e nada encontrei que me desse vontade de comprar o segundo de uma obra de seis volumes, tão pretensiosamente apelidada de A Minha Luta. Habituado que estou a assumir a culpa (por tudo), aceito que me possa ter escapado algo, que exista imensa profundidade na obra de Knausgaard. A culpa é nossa. A culpa é minha. Se James Wood elogia, quem sou eu? Quem sou eu em comparação com quem quer que seja? Só posso ser responsável pelas minhas palavras. Responsável por dizer: acho obra x cinzenta, cinzenta. 

Entro às nove e meia da manhã na pastelaria cheia. Com o calhamaço de capa dura aberto na página duzentos e tal, custa-me segurar tabuleiros e levar com os empurrões da turistada frenética. Peço um sumo de laranja e um croissant misto com manteiga. Repito porque não me ouvem. Um sumo de laranja com duas pedras de gelo. Sem croissant e sem manteiga que a manhã veranil encharca-me a roupa de suor. Leio o melhor de Knausgaard cercado por japoneses fanáticos por máquinas digitais. Eis um excerto daquilo que mais me cativou na obra do nórdico: “When you didn’t just see the incomprehensible in it but came very close to it. Something that didn’t speak, and that no words could reach, consequently forever out of our reach, yet within it, for not only did it surround us, we were ourselves part of it, we were ourselves of it.” Trata-se de uma parte do livro em que se fala da nossa necessidade de tornar compreensível o incompreensível, de intelectualizar tudo, até a morte, até a morte do pai. A necessidade de enterrar um corpo, de esconder o pavor para que possamos continuar a viver sem receio do desconhecido. 

Li algures que a obra de Knausgaard revelava muito da sua vida. Talvez tenha sido o próprio escritor que numa entrevista terá dito que despejou a sua alma nestes livros. Chegamos aos factos. Como é que um escritor lida com os factos? É possível escrever sem escrever sobre a realidade que nos rodeia? Philip Roth refere em The Facts que a ficção começa nos factos. Esta frase, óbvia, tem levado muitos leitores ao engano. Começar nos factos não quer dizer que se acaba nos factos. Escrever sobre um tio não é a mesma coisa que tirar uma fotografia de um tio. É a escrita. Começa-se num facto. Por exemplo: o tio cuspiu-me. E a partir daí chegamos ao espancamento e à vingança daquele que foi cuspido. Podemos escrever memória. Podemos tentar fazer a nossa auto-biografia. Quando somos escritores, só sai ficção. Esta é uma ideia muito importante, a de que não há para o escritor a hipótese de escolher entre ficção e realidade. Para o escritor só há ficção. É aqui que me aborrece pensar em Knausgaard. Estamos perante uma ficção sem estilo. Uma ficção desinteressante. Uma nuvem cinzenta.