Conduto: Na cidade, o sustento das palavras

Já tive uns mocassins, acreditei enfim que deus me esperava. Um dia, calcei-os, um homem pegou-me de barbas na mão, e disse - vamos à cidade, vai-te fazer bem. Deixei-me ir, na esperança de que aquela barba fosse garantia de encontrar o que me estaria destinado. Ouvi, zeloso, recomendações de cautela - na cidade há génios, propriedades horizontais, palavras que, antes de o serem propriamente, são um símbolo representado como certeza, autoras de muitos presidentes, são tão-somente uma intenção antes de serem um destino.

Na cidade fiquei, conhecendo os estereótipos do very typical, e sobre o que nela é dito das palavras como sustento, faço-me breve, como o mais que é na cidade, referindo apenas, em jeito de aprendizado, que lá as palavras tendem a não existir para o seu autor, são uma espécie de tosse que se usa para a decoração indubitável do ambiente.

Os transeuntes sentem-se proprietários do seu vocabulário, e com este exibem, sem pudor, a sua nudez, como uma baba que pende gratuita dos lábios quando abertos. Insensíveis assim a tão generoso conduto, na cidade, as pessoas deixam de ouvir, de compreender a importância da sorte guardada em expressões, dir-se-ia improváveis, como “vou ali dar fé”.

Por vezes, vou beber um café, que é, a maior parte das ocasiões, uma tosta-mista. Não me corrijo, tal não me é apresentado como necessário, e é talvez esta, poderia sugerir-se, a riqueza recôndita que sobra do que é dito das palavras. Elas já sabem o seu segredo, mas teimam em não nos dar notícias da evolução da sua vida íntima, do que têm feito em congressos, em badanas.

Na cidade, não se usam verdades com maiúscula, é puído o algodão, a palavra dita pelos quase-quase-felizes. Na linha verde, as palavras garantem uma forma de comunicar perplexidades além de toda a causação corporal, satisfazendo os manelinhos, no seu gosto particular de beber galões por perto (uma condição, talvez, de metabolismo basal), e as boas-filhas que mordiscam, sempre nova, boa fruta, pêssegos, clementinas, e gostam das explicações das maiorias, de ir lá fora, de hotéis e de muito.

Na cidade lê-se, e na leitura, as palavras são um conduto posto em prática, uma sequência estabelecida de letras ingredientes, janelas de espreitar, de abrir tanto quanto os atilhos permitem. O corpo faz depois o que é costume fazer-se, numa caligrafia que anoitece a graça dos comuns em mais um regresso das vindimas.

Regista-se, porém, que a cidade comporta de facto génios no seu íntimo canavial, e como os documentários de palavra célere ensinam, era lá que deveríamos todos estar, praticando o absolutamente irrisório, fruindo a tertúlia cosmopolita e a elegância funcional do arvoredo de betão, não fosse a sintaxe servil que nos fixa as condições produtivas (é preciso mais, é preciso mais) em região de candura rural, rigorosamente ajustada à definição de um ambiente operário que articule as mãos sem jeito.

Na infância primária, as palavras são-nos ditas sabendo-se de onde vêm - tão longe tão longe, os rapazes as raparigas de maus humores em reuniões de condomínio - e quando um homem nos leva à cidade, sabemos o que disso dizer com critério. As palavras, no sarro do uso insistente, carecem de variação, de exercício, porquanto são um significado, matéria de ler, de ser, conduto valioso na descoberta do mundo, que diz aos homens que mingam ao balcão que deveriam ser sempre uma fome, o ainda-por-conhecer, o mais que o seu horizonte é dispensado de adivinhar.

Dos amigos, na cidade, há muito me fiz freguês. De cotovelo no balcão rio segundo partes deles, menino sem cuidado numa mesa corrida. Com eles acredito que é possível viver no montijo, que o homem de barbas que um dia me apresentou a cidade, deverá ter sido uma paixão entre-tantas, que interrogou um par de mocassins com olhos de tempo perdido.

No aprumo do seu regresso (aguardo-o em cada esquina), entre uma sopa e uma mancheia de grelos, outras palavras serão ditas, que elucidarão, espero, o espanto de me saber refugiado sob a minha própria pele.