Ao céu não chega quem quer

A comida não é poesia.

A guerra não é um vulcão.

Saturno, o gigante que comeu o filho, continua vivo. É um príncipe ditador, a viver num palácio de ouro construído sobre um lençol de petróleo. É um burocrata, eleito pela mão invisível dos sistemas, o financeiro e o da passividade. Também pode ser um homem do futebol, comprador de carne que a repetição diária transformará em jogadas dentro da área, bem ou mal finalizadas.

O planeta é um esqueleto. Culpa de Saturno, que se esconde em qualquer lado.

O homem é uma vaca. Por vezes, um cão. Mas a fingir, claro. Porque a lealdade é burocrática. E a burocracia é melancólica. Os animais, ao contrário do que ensinam os manuais que ensinam a viver, não se domesticam. Os animais só desejam fugir, comer, fugir, comer outra vez. Os animais unem-se, formam um grupo, isso é um comportamento social, dizem os livros. E correm todos na mesma direção. Panças, olhos, baba, cabelos, pele encardida de pó e de medo. Não é lava, mas queima, aquilo que sai dos olhos das espingardas dos que correm atrás deles.

Esses animais são as pessoas que fogem na televisão. Ser refugiado é o estado permanente de cada um dentro de si próprio. Os que a televisão mostra à hora do almoço, são apenas imitadores, como explicam os livros. Quando todos se movem na mesma direção, isso é imitação. Homens e vacas.

As ordens dos polícias, atiradas pelos megafones, caem como pedregulhos nas suas cabeças, ou como foices a rasgar os lenços e a pasta de cabelo. Palavras que põem sal no cérebro. Língua estrangeira contra línguas gretadas. A guerra é o medo, dos que morrem e dos matam com medo de morrer.

Cronos, o soberano implacável, está sentado a olhar para isto, à espera que o tempo não passe.

A comida não é como a erva. Esta cresce na terra, sobe mas não chega ao céu. No sentido inverso, a comida cai do céu. Para estas pessoas, ela cai sempre do céu. Os aviões, que bem poderiam ser amigos ou primos afastados, acenam no céu de Damasco, para as pessoas sentadas à mesa da esplanada do café no bairro, a fumar o cachimbo de água. Ou alguém dirá que foi assim que as coisas se passaram. Na verdade, os aviões passaram em rotas oblíquas, largaram os fardos e fugiram. Fardos geométricos, bem atados com fitas de nylon. O nylon demora 650 anos a degradar-se na terra. Cada fardo pesa entre 550 e 850 quilos. Dois fardos caíram em cima de uma casa. Morreu uma mulher e a sua filha pequena. Juntas, somavam 48 anos de vida. Morreram esmagadas  debaixo de cobertores, trigo e equipamentos para as pessoas se protegerem do frio. Os jornais reproduziam esses números rigorosos, citando o comunicado dos donos dos aviões.

Os aviões compreendem as regras, mas por vezes o vento não obedece.

Onze horas da manhã, na estação. Os polícias húngaros imitam os aviões. Um deles lança a comida em arco, por cima das cabeças dos bichos, que se empurram, escorreg resfolgam. Saquinhos de plástico, fechados com um nó simples, atirados em arco, com um movimento suave. Os bichos, que antes se explicavam aos jornalistas, deixaram de repente de querer saber do inglês e empurram-se na língua própria. Os braços são rápidos, o saco escorrega das mãos de um, cai nas patas de outro, um puxão e rasga-se. Qualquer coisa se espalha e desaparece no chão pisado pela manada. Vem outro logo a seguir, lançado no mesmo arco elegante. O dedo abre-se no momento certo e liberta o saco com qualquer coisa lá dentro. Inicia uma ascensão curta e rápida que o faz descer na linha decidida pela gravidade.

Um dos bichos avança na direção de outro saco, ainda por lançar, pendurado na mão de um polícia, como se fosse um coelho morto pendurado pelas patas traseiras, como o corpo esticado na vertical. Sangue a pingar nas botas do caçador. Com a mão livre, o polícia aponta aos olhos desse animal afoito. Este recua e aproxima-se do centro da manada, com alguns passos calculados para trás, sem desviar os olhos da mão enluvada do polícia, de onde sairá o saco, depois de um movimento pendular, perfeito. O homem calcula o sítio exato onde irá cair o saco, há um computador em cada cérebro que serve para isso mesmo. Quando o plástico inicia a descida, o corpo está esticado para trás, os braços levantados, as mãos abertas com todos os dedos. Há corpos a mais, todos esticados. Imitação, portanto. Comportamento social desencadeado por um estímulo externo à manada – poderia ser dito nos livros. Os olhos dos polícias seguem as mãos esticadas. Dura um segundo, mas é uma imagem inesquecível. As televisões vão mostrar aquilo ao mundo.

Nessa noite, ou melhor, quando for noite no outro lado do mundo, num apartamento em Yorkville, o bairro do Upper East Side, em Manathan, uma mulher alta e magra, com feições ibéricas, estará a ver as imagens sem som, deitada no sofá, depois de ter mandado embora o rapaz com quem acabou de fazer sexo. Terapêutico, dirá depois às amigas. Para uma cura de alma. Refugiado é um estado de cada um dentro de si.

Ao céu não chega quem quer. O saco está a descer. Ali, naquela estação, com os comboios parados, há homens a querer levar a comida que conseguir agarrar para as suas mulheres. Há mulheres com a certeza de a conseguirem alcançar para os seus filhos. E há filhos de pais afogados na travessia do dia anterior que a querem só para si.