As Aventuras do Senhor Lourenço (§14 aventuras amorosas)

(cont.)

Manuela atirou-se-lhe ao pescoço e proferiu em tom de máxima: – Estou perdidamente apaixonada por ti, meu amor.

– És totalmente incapaz disso. – Respondeu Lourenço, numa altivez, quase desdém, que ninguém lhe conhecia. Tanto que Manuela começou a chorar copiosamente.

– Não chores, meu amor, não chores. Digo a verdade, tu estás acima do amor, tu foste feita para ser amada, não para amar. São os outros que têm de rastejar atrás de ti – é isso que faz o amor, põe-nos de rastos –, não tu atrás deles. Tu sabes que eu não te mereço, sou tão vulgar, quando este circo passar vais sentir nojo de mim, tenho a certeza.

– Qual quê, não percebes nada, eu amo-te de verdade!

– É uma encenação, Manuela, encenas o amor como se faz nas telenovelas...

– Estás parvo?!

– ... Talvez, desculpa, mas não acredito que estejas assim tão apaixonada por mim, eu não sou homem de provocar isso nas mulheres. Olha bem para mim e terás a certeza.

– Mas eu amo-te, sinto-o, o que queres que faça, que deixe de te amar porque tu desconfias disso?

– Ok, está bem... abraça-me.

E foi assim, sem tirar nem pôr. Lourenço a elaborar um discurso sobre o amor (quem sabe se influenciado pelos Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes), Manuela com o desejo incontrolável de se fundir nele, Tristan und Isolde sem Wagner, de se atirar a ele como alguém se atira da janela porque quer esmagar-se no alcatrão.

Para justificar o seu estilo relacional, Lourenço usava uma frase de O Homem Sem Qualidades: “tudo o que pensamos se resume a simpatia ou antipatia.” Assim, sendo ele essencialmente o mesmo, uma cascata de simpatia tinha alterado radicalmente a maneira como era considerado na escola e no mundo. Estava em ponto-de-rebuçado, podia ter comido todas, ou quase todas, as colegas, não fossem elas em geral pouco apetitosas; colocado todos os colegas debaixo da sua perspectiva. Talvez mesmo pervertido as mais fervorosamente crentes na Transcendência, de Deus, do PCP ou de um cacique de sala-de-professores; tinha agora a força de anular, com um gesto apenas, qualquer grande narrativa de verdade e felicidade, concentrava em si todo o campo épico, trata-se da velha identificação hipnótica entre o chefe ou herói e as massas. A sua paixão pela Manuela exigia, aliás, que multiplicasse as aventuras amorosas. “Trai a tua paixão se não queres que ela te desbarate.”, costumava dizer-me. Mas ficou quieto, ou quase, numa noite de jantar comemorativo, organizado pela escola em sua honra, foi levado para o carro pela Directora, mulher que no século passado era bela e que tinha recomeçado a ir ao ginásio.

– Deixa-me chupar-te, por favor, quero engolir a tua seiva. – Disse ela de rompante, como se todas as convenções do namoro tivessem desaparecido sob a vertigem alcoólica. 

[Nunca bebam álcool se quiserem evitar um engate piroso. Troquem a poesia pela lógica, o whisky pela água, uma feijoada por um prato com arroz. Usem terminologia biológica ou psicanalítica, jamais as metáforas histriónicas da literatura ou a vulgaridade anarrativa dos filmes pornográficos. O álcool armadilha os fragmentos do discurso amoroso]

Anabela, era assim que se chamava a Directora, abriu-lhe as calças e pôs o sexo murcho de Lourenço na boca. As banhas laterais empurravam com força o volante e o seio direito pousou na perna do Lourenço, enquanto a sua mão, também direita, pegava na base do pénis e boca e língua tentavam reanimar o pequeno verme.

Cerca de vinte minutos depois deu-se a conclusão espasmódica. Foi o seio direito que conseguiu a proeza, mais do que a felação em si mesma ou as frases elegíacas e porcas, à vez, que Anabela enviou a Lourenço, embaraçado. Ela continuava atormentada com a morte do marido, a quem enganou alegremente. Não pela morte em si, ele morrera há muito para ela. Mas porque quando decidiu passar ao inorgânico o fez na cama, junto a ela, dizendo estas palavras: “Tu és uma puta, Anabela, és uma puta sem remissão, como o meu amor por ti.” Não que o marido se importasse com as escapadelas da mulher, foi pura vingança, quis fazê-la sofrer pelo menos tanto como ele sofrera por amá-la acima das suas forças, tanto que teve de morrer.

Uma marca de chocolate, um placebo médico contra o reumatismo, uma editora especializada em livros de auto-ajuda, um produtor de vinho de mesa ou, entre muitos outros, um estofador industrial quiseram contratar Lourenço. Disse-lhe várias vezes que devia arranjar um agente que tratasse disso, enchendo-o de dinheiro. Mas Lourenço era um mole que gostava do imperativo categórico kantiano, um moralista falido e meio banana. Recusou tudo, continuou nas aulas a mandar calar adolescentes ranhosos a quem nem o seu acto heróico impunha respeito. Manteve uma vidinha insuflada provisoriamente de excentricidades. “Os balões cheios esvaziam-se”, dizia-lhe o colega Joaquim, lobo-do-mar da escola, antigo revolucionário capaz de prometer a junção do Céu com a Terra.

– Continua a soprar, Lourenço, não deixes que isso perda gás, olha o que me aconteceu. – Disse Joaquim.

– Está muito cheio, não consigo pôr mais ar dentro, não tenho pulmões para isso. – Respondeu Lourenço.

– Mas continua, vê se continuas, não queiras ficar como eu, um diabético amargurado a quem os miúdos chamam “velho halitose”.

– Não chamam nada, tu és uma referência. – Disse Lourenço, sentindo pena do Joaquim.

– Claro que chamam, vejo pior mas continuo a ouvir bem. E depois, é mesmo assim, Cronos já não come os filhos, são os filhos que o comem a ele. E tu aproveita, come aí as gajas todas, ou então casa com a Manuela, aos 50 ainda será boa, mesmo boa.

[Joaquim era o mais inteligente dos professores, chegava à verdade, seja lá isso o que for, duas vezes mais rapidamente do que os seus colegas. Mas isso sempre o prejudicou mais do que beneficiou. Numa escola, o ecossistema dos professores e funcionários é pequeno, está envelhecido e fixou-se há pelo menos 10 anos, por isso as paixões e os ódios são mais profundos, têm a enorme importância de não se lhe poder escapar]

Lourenço indeciso, a querer voltar à transparência, uma existência de baixa intensidade, contemplativo por preguiça, cansado da vida. 

(cont.)