Matéria Aberta

I.

hoje não me interessa mais a tua morte,
mas o amor que abandonou estas
ruas de cidades infinitas. e nas paredes,
será que ainda branda o lume?
como quem pergunta: o teu espírito ficará
marcado, cravado mesmo,
nas geladas janelas sem luz nem portas
para a longa noite
cuja aurora grita na ausência do som
cristalino? partem-se as rolantes marés
no abismo desgraçado de aves
e perfumes florestais. nasce da terra a dinâmica
abraçada num gesto múltiplo, coberto
de beijos e enxadas liquidamente esquecidas
no meio de sonhos, de veludos indiscretos.
embrulhem-me esse tempo nas têmporas,
recolham a cinza e o tabaco e a escrita
que não ousa aparecer nas gotas
da manhã ou nos bafejados dedos empurrados
pela lira folgada dos incêndios nocturnos.
a tua morte lenta. genial. feita areia,
encoberta de trigo nas faces, nos imperfeitos dorsos
levantados em profusa oração. nota as horas
que começaste a re-viver. mal a cidade celebra
o teu desaparecimento, uma breve eternidade aos ombros
da sombra, da fraga, do vento
quando passageiro alheado. 

nenhum verso será todavia o chão que beijas
à entrada. 

 

II.

mas também o lado
esquerdo da superfície pulmonar
dos ossos em convulsão,
estrela pairando no cimo das escadas
universais. acabo de engolir o sal
dos rios secos, as moedas da traição
e os pés sujíssimos por desafiarem
na brisa desertos nus.
aí me consumo.
nas águas, nas víboras - também nas provações
da mente por ilusões descarnadas.
exactamente como previra o salmo
na boca debaixo
das pedras e dos cântaros embebidos.
quero que a minha casa seja
o norte e o sul
desta ventania 

alvoroçada, destroçada, brava cercania rugindo
as palavras enumeradas diante do alfabeto
inconsolável. consola-me esta embarcação dentro
de mim tão vaga
quanto invisivelmente 

fadada, oleada no cais, qualquer coisa de imperdível.

 

III.

tenho algum frio no mar
que rebate meus argumentos de beleza.
o sol espalha as suas cartas
impedidas de maldade
pela mesa sonora do coração ardendo.
sabes que durante a noite não consigo
inventar o veloz nevoeiro.
a natureza posou nua diante do olhar,
que se espantou moderadamente
com suas melodias de dor. a alegria triunfal
dos faunos, o descanso, o céu raiando
cores primárias de cinzento.
e aquela chuva torrencial que dança
em cima dos meus dedos
como se a vida fossem vários odres de vinho
nas cabeças ciclicamente galopantes.
posso hoje dizer
que as bátegas se derramam nas raízes
de corações mais ou menos tensos. brilhantes
à imagem da lua que criou a linguagem
dos corpos revolvidos. e revoltados.
essa água marinha escorre-se-me
perdida nos peitorais da última varanda,
primeira entre todas,
a mais perfeita das trovadas na mais branquíssima
das mulheres de costela fabricada. 

minha poeira tenho-a eu nas mãos
duradouras de tempo azul:
de ouro. 

 

IV.

A luz tenebrosa. Tremendamente invisíveis.
Flocos imersivos em focos
de folhas caídas nos solos
insanamente infindáveis. Errâncias particulares
nos passos sopessados, plenos
de respiração na maré maior
dos afogamentos interiores e inteiros.
intensamente rápido, nada se produz realmente
entre a mão e a escrita, entre a lava
explodindo no peito aberto
e a terra ecoando cantos calmos de solidão. 
antes de nós, éramos nós demorando em nós -
os outros complementares.

 

V.

espremo contra o sangue
todas as feridas iguais ao prazer da tua boca.
os beijos morrem no segundo
e perpetuam-se na corrente libertada
dos paraísos comuns.
isto é, duas cinzas em contacto pelo vento
causam a combustão que ambos
precisamos - despe a pele, depõe o coração
entre os braços e reza na ponta dos pés
salgados que pisaram desertos
e espinhos. agora abre a torrente da roupa,
infiltra-te de água subterrânea,
deixa a cabeça à roda porque os membros pedem
a dança dos vivos. pega numa estrela e projecta-a.
se eu sou o vento, nenhum pedaço teu
ou divina matéria se perderá no meio
dos arbustos ocultos e jacentes.
apenas te deixa engolir,
e cospe as pernas e depois os olhos
e por fim os sorrisos.
se bateres à porta, entra pelo lado
mais escondido de todos:

respira o oxigénio da língua serpenteando.

 

VI.

rios de pó correm a pé as travessias
longas do coração pousado.
ao alto erguem-se
as mãos como mastros distantes,
quebrados, luzes desfocadas
nas salas negras da impressão.
quero que em mim
imprimas
a destruição dos símbolos maternais,
as fontes que jorram, toda a força
dos moinhos quando o sésamo
não basta para a saliva
ardente de pães divinamente ázimos.
desflora as rosas, meu amor.
e depois conquista cada
centímetro
das areias alcatroadas. derrama sobre os braços
o bronze prometido às estátuas subindo
e permanecendo no nó-górdio
dos imortais. queima-me fotografado em espelhos
de mirra, morrendo não para a vida, mas libertado
cada vez mais das teorias incessantes,
circulando rasteiras na língua doce.
escancara-me as portas do coração,
parte-o se queiras numa altura
desmesurada, incrível, imprópria para os cardíacos
vagamente falhados. no sangue destes
estilhaços 

tens finalmente os cabelos sobre a minha frente.