Poemas Estivais - Parte II

Lembra-me um sonho lindo acabado

Eu não quero ser eterno
quem quer viver para sempre
diz o Freddy mercury
mas queria que esta melancia
durasse mais umas porções
aí já é o milagre da multiplicação, confundo tudo
queria também pular de nenúfar em nenúfar
até cair nu no lago, sou muito descoordenado
e desse refrigério talvez nascesse um quadro
pintado antes do meu nascimento
e sobrevivendo à minha morte
Desisti de perceber a desordem do tempo
é difícil, come melancia, rapaz, sopra uma voz,
para ver se facilita.
 

Depois de ir levar gente ao barco

Não sei se era isto que os antigos
sentiam depois de se despedirem
das pessoas que partiam nas embarcações
para em sítios longínquos guerrear
pilhar, matar e ocupar
e os que ficavam voltavam de mãos húmidas
às casas a cheirar ao silêncio da ausência
e a chorar os sacrifícios feitos invocando o vento
e conversavam à lareira sobre o Minotauro
ou protestavam sobre seres afins
e falavam da partida como uma espécie de morte
Hoje os sítios não são tão distantes
Estão cartografados
mas há telefones para receber notícias das chegadas
e imagens das guerras e pilhagens que ainda persistem
os reencontros são mais frequentes
as viagens já não duram décadas
Há mais sangue e menos epopeias
e inúmeros sacrifícios vãos e ocultos
mas o vazio deixa ainda
nas casas um lastro nos espaços
como a chuva de micro poeira
que brilha quando a luz incide no ângulo certo
e nos perguntamos
se não se tratará ainda
dos restos da pele dos que partiram
e como sob o espectro de fantasmas
iremos refazer já de si a tão incerta nossa vida  

Heráklion, agosto 2025

Poemas Estivais - Parte 1

Fome na cidade

Ando subindo e descendo com fome
as ruas do bairro e as que dão nos bairros vizinhos 
O meu corpo não me revela o
segredo deste apetite
que me movimenta nesta noite
onde aqui um avião além
rasga à uma da manhã
sonicamente os céus de Lisboa
Tenho uns chinelos azuis
tipo havaiana
o que também
não acrescenta nada
ao mistério desta fome
nem desta pele
que se articula em boca
e ocorre-me a ideia dum
fogo interno
e do terreno de pasto
e a parcela de pinhais ardidos
que fazer com a cinza
talvez em tempos
houvesse um vulcão aqui
um vulcão que explodiu
matando gente
com outra fome
que esta que nem à luz
duma erupção se revela  

Lisboa, Julho 2025

*

Fissura no colchão

Temos esta manhã
o corpo atado com um laço
tenho de aprender
mais uma vez
que uma vez desatado
não é sempre o amor
o que fica do acto
para além do cansaço
apenas dois corpos
cada um em sua margem
e entre eles naves

*


Sede à beira-rio

Uma doença gera outra
o vento bate na água verde do canal
os barqueiros encalham
nas plantas invasoras
que escapam ao controlo camarário 

Os mortos geram outros mortos
a terra que ladeia o canal
está empapada de água
Nestes dias as margens
têm menos sede de corpos
Mas assim molhados e moles
São de deglutição fácil após a chuva
pensa a mente que crê
organizar tudo

 *


Um prosaico poema sem tema

Acorda-se na cabeça
por fora os cabelos
desregrados
as ideias subindo do aquário
para respirar insónias 

O fluxo matinal das águas esvai-se
estival nos esgotos os corpos
deitam fora o que o sonho cuspiu 

O querer dormir-se mas o que vale 

o querer a esta altura da vida
em que só há sons de canos
e passos no andar de cima

Nem se sabe se são de gente
ou se o mundo na noite se mudou
e são os gatos que se erguem
eretos nas patas traseiras
a arder de ideias 

O homem que grita na rua de Crimeia

Ao longe vejo ainda,
numa ilusão que me atravessa,
talvez gerada pelo corpo,
afastar-se a aura invisível
do homem que grita para além da ponte
como se o mundo num gesto violento e louco
lhe abrisse a boca para lhe pôr lá dentro uma palavra

Vejo o fim da humanidade e/ é às dezoito e quarenta e nove

Vejo o fim da humanidade e
é às dezoito e quarenta e nove
numa praia em Rodes

Não sei quanto tempo mais
vai durar a bateria
O fim é o de tudo
As três raparigas têm tempo
e rede ainda 
para postar uma última foto
crendo nos ocasos comidos
pela morte do tempo

No que vejo e em mim 
não há talvez já
sombra de humanidade

Um fio puído de verão
um vortíce denso de esfinges
talvez nos sobreviva
e o mar desse azul
mais do que a tua íris
a que compará-la?
que dizer dos que vão morrer

e plantada como uma campa 
no meio desse mar 
(como se pôde esquecer 
tão facilmente os náufragos?)
a prancha corroída italiana 
donde as crianças 
ainda vivas
no abismo futuro 
ou talvez não 
saltam

Olimpíadas

Hoje acordei com o cheiro
da morte como uma nódoa
na omoplata ou seria uma planta
de floração tardia?
Um nevoeiro espesso cobre
a cidade escondendo-os
sentados em escritórios ou à borda
da cama eles e eu indignados
Ninguém diria que hoje
é o dia da grande festa
Pelo Sena em desfile
vão passar de todo
o mundo os corpos
dos atletas

Dois poema de "Um dia serei humano" de João Vilhena

no fundo da lata busco o prazo
dois do três de dois mil e quatro
tu entras e sais do televisor
como uma notícia vista
em todos os canais
e ris-te da minha precisão
que diferença faz
um dia a menos um dia a mais

na taça já pouco resta da fruta enlatada
no sofá o teu corpo quase morto
é o eco da imagem retida na foto

é difícil tirar os mortos dos vivos
as sombras não têm prazo
nelas está o arrepio dos astros


O dia revelou-se pouco a pouco
sem nunca se mostrar inteiramente
Esticas os lençóis a noite
é uma memória que a tua mão alisa
……………………………………….
Nada se abre a estas horas nem eu nem tu
nem a padaria do lado ser a peça inútil
que resta dum armário montado à pressa
ou dum jogo abandonado de criança
…………………………………………
Isto vem tudo melhor e claramente explicado
numa página exata quem sabe a 44
de um livro talvez por mim em tempos lido