SATORI

Tinha visto no horário qua havia um comboio Faro-Lagos às 14.37, eram 13.40, não esperaria nem uma hora. Pedi bilhete.  

É só às 16.17, viu mal, disse o homem. 

Comprei o bilhete e sentei-me, faltavam quase 3 horas e eu tinha uma mochila pesada e botas péssimas para andar. Eu aguento, vou sentar-me no cais em frente à ria e não me mexo. E tenho o livro. 

Quando estou em frente à ria Formosa alguma coisa acontece, é como se me enfiassem uma moeda  pela cabeça dentro:  dou um salto, tiro a máquina da mochila, atravesso a linha do comboio com tudo às costas  e desato  a tirar fotografias sem conseguir parar. Regresso mais calma e sento-me: abro o livro vermelho do budismo zen e psicanálise do T. Suzuki, Fromm e Martino. 

Está um dia lindo de outono, o sol brilha,  e brilha na água, e brilha na superfície metalizada dos comboios,  e também em cima das palavras do livro ofuscando os koan, os tao, os zen, os satori, os nada. Desisto. Olho a ria. Pego  no livro. Olho o relógio da estação, que não se mexe. Volto a pegar no livro, o outono transformou-se em primavera, as palavras saltam, apagam-se, passam-se as horas, a maré enche. Enche ou vaza?  

As pessoas falam e passam. São tão interessantes as pessoas, que sorte a minha:  quando eu cheguei ao mundo já cá estava tanta gente.  

As horas passam, o comboio chega à estação ainda muito antes da hora.  

Vou para lá, sento-me, reabro o livro. O sol entra pelos vidros, está tão quente, agora é verão. O calor amolece-me, não compreendo nada do que está escrito, poiso o livro, não deve ser desta que o consigo reler. Adeus taos, adeus satoris. Nem lê-los nem sê-los nem fazê-los. 

Começámos a andar, o verão aquece pela janela  e eu fecho os olhos. Quando os abro, reparo que perdi uma estação. Era uma estação sem importância, não devia sequer haver aquela estação no percurso. Abro o livro, mas já nem faço menção de olhar. É só abrir, arejar as páginas.  

O calor volta a envolver-me, fecho os olhos, de vez em quando abro-os e leio o nome das estações que vão ficando para trás. 

Quando acordo é quase noite, já fiz mais de metade da viagem. Olho para o livro, mas desta vez já só para a capa. 

Agarro-me ao livro e adormeço pela enésima vez. 

Quando volto a acordar estou na estação de chegada.  Lá fora é noite, parece inverno. Não está ninguém na carruagem, nem o revisor para anunciar Lagos. Nada. Pego na minha tralha, no livro e abro a porta. Um vento gelado bate-me com força no rosto. Desço devagar, custa-me bastante de tão trôpega que estou. Não está ninguém na plataforma.  

Uma noite de inverno, fria e escura, e ninguém à minha espera. 

Rememoro o dia: era outono quando perdi em Faro o comboio que nunca houve, depois primavera e verão, e agora inverno. 

Passou-se um ano? Pode muito bem ser que sim, não faz mal; um ano, apesar de muito, não é nada. Mas porque não está ninguém na estação à minha espera? Porque ando tão devagar e me sinto tão cansada?  

De repente uns dedos invisíveis apertam-me a garganta, o coração dispara, falta-me o ar. 

Na medida do que me é possível, acelero o passo à procura de uma superfície espelhada.