Cerzido, Exílio circular, Pongo en tus manos abiertas…

Cerzido   

 O avô puxa o lenço do bolso
entre os fiapos
Desfolha o pano em que guarda
ranhas e coriza
Esfrega os dedos sela o muco
Respira anônimo
Salvação de seu hábito
Monge provençal dos pombos e praças
O que é um velho sem suas desesperanças?

Contente admira a pintura do ranho
Integrado ao tecido
Ri de canto
Como quem secreta sua obra máxima
Inventa que farão comícios ao legado
póstumo que deixará num grande mosaico
Fosco entre aplausos
Encantados o MoMA, o MAM e galerias chiques
da velha Europa
Dedica a todos suas secreções
Seus cuspes abençoados
O que é um homem sem suas porcarias?
Nessa hora o olho arranhado da catarata brilha
Ele bem sabe, o universo
também faz gravuras com as coisas que sujamos.


Exílio circular

 

três meses sem ver tua cara
ando paranoico uma metade na rua e a outra
no canto do quarto
o apartamento cresceu de tamanho, agora a sala tem 40 metros e dois pés de altura
flutuo entre um cômodo busco caminhos
nas barricadas que fiz no corredor
se ela visse como o banheiro está – teria um troço ou nadaríamos até as paredes ruíre
caindo no outro lado do lado que teima não abrir

três meses e sonho com dentes no lóbulo
faço arabescos na parede do meu estômago, ele inda assim não para de doer
sabe que minha caligrafia é ruim para escrever em linha reta
perdoa se escrevo teu nome
torto em um coração de bic vermelha
mas se não fosse desse jeito eu não te abrigaria com esse rude afeto

o frio que anda sentindo nessas estradas me cobre todas as noites
beber teu perfume não foi uma boa ideia
me abdiquei da carne, mas ando mordendo tuas fotografias
tocar-te a distância
o sol é indiferente às coisas que ilumina
: rastejar       suaviza a serpente              uma pele para trás esquece                outro deserto :
não cai uma gota de chuva desde que você levou minhas nuvens em sua bolsa peruana
a brisa sopra o que sou, fecho as janelas e os vidros batem a fim de serem quebrados
guardo um dos cacos pra ver em mim a tua imagem
vozes ao longe
: não estou
cada estrela tem a duração do querosene.


Pongo en tus manos abiertas…                                                                    

para Víctor Jara
“his hands were gentle, his hands were strong”

acho tuas mãos de terra e sedimentos
enterradas (obtusas e
ósseas) em um palmo de deserto
onde os brutos corroeram tua boca até calarem teu ferrão
resgato a mão esquerda – ainda  conserva as unhas
penduradas a fio leve junto à carne
mordiscada algumas vezes – deixada  para trás
por uma família de vermes
bichos desses que servem para comer herois
sobras do jantar de domingo antes do futebol

colho a mão direita de dentro de um fundo buraco
em estado decomposto, teus dedos
já nada possuem de tua vida – não poderiam dedilhar nenhum instrumento
que não seja seu próprio tendão exposto – 
a canção de teu desaparecimento enquanto homem
em sonho ouviremos
de tua boca nostalgias e rancheiras:
Víctor teus filhos procuram teu paradeiro e eu só tenho
tuas mãos para redimi-los
dez dedos que não podem escrever poemas – dez
dedos que não podem acariciar o rosto de quem amas – dez
dedos na brancura do osso – dez
dedos e a escuridão do corte que separa a comunicação entre tato e corpo – 
dez dedos que já não podem com o mundo
 

“essa noite lá pelas bandas de San Ignacio - um homem foi visto andando à procura de duas mãos que lhe foram arrancadas há quarenta anos.”

terá um indivíduo assim mutilado o direito
de voltar depois de morto?
um viés de vingança e soldo, revogar o que lhe foi tirado
vivo Víctor você estará ou estarei eu com as mãos de outro?
Víctor sem mãos para pedir aos céus
sem mãos para apertar o pescoço – de quem – 
mas por baixo da camada morte – tua retidão – 
tuas mãos agora inúteis ainda fariam miséria
a qualquer tocador de viola ­
quem poderá desfazer tuas notas – diapasão inquebrantável – 
outrora poderíamos cantar em coro o que só a capela fará
em teu isolamento – figura etérea das noites chilenas – 
mesmo que teu fantasma andarilho por aí se perca
a ninguém assombra antes ilumina.