O cuidado das coisas delicadas

Diz-se na filosofia cabinda que «as coisas delicadas [se] tratam com cuidado». Paula Tavares – condensação de Ana Paula Tavares, nome mais extenso que usa para as outras lides de escrita, teórica ou ficcional, como se, também, a contenção delicada da sua expressão poética exigisse a conformidade da rasura do nome, para assinar os poemas – resgata este provérbio à beira de ser verso, para epígrafe e título de um dos poemas do seu primeiro livro, Ritos de Passagem (1985), incluído na sua Poesia Reunida seguido de Água Selvagem, editado em 2023, pela Editorial Caminho. Nesse poema, a crueza agreste do primeiro verso, de uma só palavra, quase a forçar um neologismo que resiste à gramática, entra num subtil dissídio com o advérbio que forma o segundo verso do poema. É assim que, com a rarefação máxima do discurso, dois versos – duas palavras à solta na página, desalinhadas das convenções poéticas mais formais–, de uma só vez, e com um traço de ironia, dão conta do atrito nas relações, desiguais, entre um homem, uma mulher:

                                                Desossaste-me

                                                                        cuidadosamente

                                   

A afirmação de uma liberdade entranhada e que se procura desenterrar, fazendo-a romper da força bruta da terra, é bem a raiz da poesia de Paula Tavares, que convoca a memória ancestral dos saberes, dos actos, dos gestos arcaicos, primordiais. E não sendo falante das línguas autóctones do sul de Angola, onde nasceu, é, na verdade, também a toada dessas línguas que procura trazer para a sua poesia; e é no seu eco rítmico, quase cantado, que sussurram significados a que se acede pela estranheza dos sentidos. Nestes poemas, pulsa uma forte consciência da liberdade ceifada às mulheres– prática tão antiga como continuada, em culturas e tempos tão diversos–, uma aguda percepção da sexualidade reprimida, do sentimento de despertença do corpo feminino. Por isso, das suas palavras nasce uma força identitária que liga a mulher à terra, em poemas que falam na primeira pessoa, com uma voz própria, voz de mulher com timbre, a furtar-se ao peso social, quase eximindo-o: «o que me passeia nas infinitas veias/é a seiva», lê-se no seu livro mais recente, Água Selvagem (2022), publicado juntamente com a sua Poesia Reunida. Mais do que  metáforas  naturais, em que se convocam as árvores, os frutos, a natureza, o rio, o próprio trabalho da agricultura, a pastorícia, o  texto poético assume a clarividência de um argumento sociológico, antropológico, quando expõe a esta identificação, osmótica, entre mulher e  terra frutificando, vivendo, e vingando, à revelia, exibindo os seus frutos, a seiva, que em si cresce e se cria naturalmente livre sobre a carapaça do mundo, e com o poder de o romper, de com ele se permutar:

 

Aquela mulher que rasga a noite

com o seu canto de espera

não canta

Abre a boca

e solta os pássaros

que lhe povoam a garganta

                                                                        in o Lago da Lua (1999)

 

É dessa mesma terra que, num dos seus poemas, se diz que «tinha feridas na pele». Assim como qualquer mulher as tem, como todas as mães são elas próprias, elas mesmas, uma cicatriz. «As flores com que me vestiram/Eram só/ para arder melhor», lê-se em outro poema do livro Ex Votos (2003)

 Na poesia de Paula Tavares, a palavra vai-se tornando mais fina e afiada, para dizer o íntimo corpo feminino que se funde com o corpo da mulher angolana, corpo próprio fundido numa herança cultural e social. Tudo isto nos mostra o prefácio de Cármen Luccia Tindó Secco, à Poesia Reunida (2023), quando lembra, citando a poeta, a sua voz metamorfoseada «em grito que se espeta faca na garganta da noite».  A terra tocada pela mulher africana, que a molda, simbolicamente, é a herança antiga de uma memória, que se torna palavra na resistência serenamente atenta, e delicada, mesmo quando exibe a violência do gesto. Nos poemas de Paula Tavares, há versos que ressoam essa sabedoria quase proverbial, um saber que se quer próximo da terra, das suas raízes: «enquanto cresço, voo mais alto e mais alto, e quase chego ao chão.», lê-se.

Essencialmente nos primeiros livros, essa liberdade ferida que os poemas atravessam, também esse desabrochar do alvedrio feminino, contaminam a própria liberdade da linguagem, assim como a própria libertação formal do poema, espécie de alforria da convencionalidade poética, que se estende à disposição dos versos da página, até ao grafismo.  Em Ritos de Passagem, editado em 1985, esta conquista emancipatória da palavra escrita, face aos grilhões das convenções formais, menos parece dever às heranças dos experimentalismos vários, herdeiros dos modernismos, do que a uma genuína busca de quem simula oralidades várias mesmo quando escreve, e que vai contornando as peias formais da hegemonia da própria língua portuguesa, embebida aqui na tradição oral e nas raízes angolanas.  Uma força que se traduz em processo poético, ao assumir a liberdade de um ritmo, e que se mostra, exibe, como voz, como corpo, em paralelo com a naturalidade das flores, das árvores, da terra, dos frutos, do que há de mais natural e mais  intrínseco; é a descoberta dessa força, enquanto resgate de uma voz audível, que faz dos poemas caixa de ressonância: espécie de voz, que, em simultâneo, é escuta. É que mesmo na escrita, mesmo exibindo-se enquanto texto, é essa voz que lhe está submersa e oculta.

Transcrevo, na íntegra, o poema que comecei por citar, aliás, um dos que Inocência Mata, no prefácio à Poesia Reunida de Paula Tavares, considera paradigmático dos veios da sua poética. Como em nenhum outro, a procura da liberdade feminina sexual (e a sua concretização, aliás, nos versos finais) se alia  à própria libertação do verso e dos enleios rítmicos  e formais do poema, que avança numa quase progressão narrativa, que perpassa imagens quebradas de uma identidade devastada, um corpo diluído, enquanto pertença, enquanto garante de uma vida própria, que se pode concentrar em pleno  em todo aquele vago emaranhado que nos somos, quando a nós próprios nos designamos pelo pronome «eu». O corpo enquanto ferida, como prótese de um homem, com veias desaguando noutras veias, o pulmão reduzido a metade: o poema exibe, formalmente, também essa respiração esgotada, resultado de um percurso em esforço, que se torna mais forte, autónomo, também, por contornar as convencionalidades da linguagem e a da estrutura dos versos, ritmos, grafismos. No final do poema, encontramo-nos perante um corpo-ser já uno, aceso, que não bate a manteiga, não põe o cinto, e que assume para si um verbo em movimento: «VOU», assim em maiúsculas, ao encontro da liberdade de saltar o cercado, a sul. Leia-se, sim, o poema integralmente:

 

  As coisas delicadas tratam-se

     com cuidado

                                                                                                                              Filosofia cabinda

 

                                    Desossaste-me

                                                             cuidadosamente

                                    inscrevendo-me

                                                              no teu universo

                                                              como uma ferida

                                                              uma prótese perfeita

                                                              maldita necessária

                                    conduziste todas as minhas veias

                                                              para que desaguassem

        nas tuas

     sem remédio

meio pulmão respira em ti

o outro, que me lembre

mal existe

    

       Hoje levantei-me cedo

       pintei de tacula e água fria

o corpo aceso

        não bato a manteiga

        não ponho o cinto

                                         VOU

                                                      para o sul saltar o cercado

                  Lendo este poema, como tantos outros, e não só deste livro inaugural,  ocorrem-me — e também do ponto de vista formal– palavras como florescer, frutificar, e torna-se bem delineada a analogia da semente que cria raiz e fende a terra: desabrochar; e não por acaso a natureza, os frutos, as flores concentram as imagens por que se resgata a voz silenciada das mulheres, como se lhe devolvesse um lugar originário da terra, profundo, ancestral, arcaico que a sociedade quase sempre lhe renega e não lhe reconhece,  exibindo o descaso com que se tem tratado as coisas mais delicadas, mais enraizadas, que sustentam afinal o mundo.

            É inegável a expressa tematização feminista, a recuperação da sexualidade da mulher, da sua identidade – e a presença pulsando de vida da própria natureza —, que tem ainda mais relevância nos tempos pós-coloniais, quando se exalta o herói resistente face ao opressor, mas se relega, para a sombra, a própria resistência da mulher, subtraindo-lhe o real papel na terra que pisa, na terra que é sua, na terra que é, afinal:

                                                Apagaram o meu nome de todas as ruas

                                                Das listas organizadas dos heróis

                                                Das esquinas da escrita

                                                Do desenho

                                                Não tenho nome agora

                                                Do meu título ninguém se lembra

                                                A água da roupa das mulheres

                                                A pedra onde bate a força das mulheres

                                                Junta sílabas de Silêncio

                                                Pendurado na corda ao sol

                                                um nome antigo se desenha

                                                mãe

                                                                            in Água Selvagem

 

 

Também por isso esta primeira pessoa, este eu, com voz própria, não diluída numa abstracção poética e formal, é uma voz que ressoa enquanto se enuncia, como se fora um gesto, que aponta à memória, à consciência de um lugar de pertença, um sítio com a sua geografia própria, a cor, a terra, as raízes, seus frutos, mas também essa língua, as línguas várias desconhecidas, mas que trazem um oculto som de liberdade, de estranheza, da importância da comunicação não verbal, aquela que Audre Lord dizia ter aprendido com a mãe, que em lhe falhando palavras para dizer o mundo as inventava. Assim, a linguagem da poesia.

Não terá sido só Paula Tavares, poeta, que venceu, tão justamente, agora, em 2025, o prémio Camões, mas também Ana Paula Tavares, escritora, historiadora, antropóloga, etnóloga, por este cuidado poético, tão amplo, com que trata feridas do mundo tão delicadas, mostrando, pela poesia, mais do fazendo compreender que as mulheres, mais que donas de casa, talvez sejam, sim, as donas da casa. Desta casa: o mundo como o corpo.

Os besouros

Ora é preciso que as pessoas entrem e saia
 Que vivam por toda a parte, por causa da verosimilhança
                                                      Eu gosto muito da verosimilhança

                                                                                                                                                Herberto Helder

 

 

 

O poeta abre a porta  e  um enxame de besouros
entra pelo poema  em revoada e infesta
a ortografia do silêncio. 

Que nome terá  uma matilha
de insectos zunindo as canelas da métrica  
pérolas negras   atravessando a culpa 
para embater  às cegas   nas paredes... 

Na verdade
antigamente também eu gostava bem mais da verosimilhança.       

A mosca --por exemplo-- é um insecto muito  verosímil
na  esfrega diária de quem fuça a  crosta    aninhando (ternamente)
os ovos  na  face  da ferida.  E as formigas.Um pingo de mel
sobrante do verso e chegam  brilhando ao trilho em perfeita ordem. 
Não fora o bulir apressado    mentiriam as letras   as palavras
ocultos símbolos  
que tempo não houveram de ser
na  ociosa lamúria do verso.  

Ah,
as moscas e as formigas verosímeis
a descerem dos cabelos até ao braço
para  se alojarem perfeitamente credíveis
na infecção poética!
 

Eu também gostava muito ( muito!) da verosimilhança…
até abrir a porta
e um enxame de deus ex machina
me entrar   poema  dentro em revoada  
zumbindo na caligrafia triste do silêncio. 

Generosidades

GENEROSIDADES

 

Ainda bem que partiste
a nossa vida em dois
e levaste a pior parte. 

Tão lastimável ver
dois corações ásperos
em refrega mesquinha
defendendo fronteiras
(Alto! além  pele ninguém passa)

Os livros, por exemplo,
são coisas  simples de dividir
rasgam-se metodicamente ao meio
para cada capa, a sua contracapa
e aí... foi pacífico que eu ficasse com os inícios.
A ti, couberam-te  todos os finais. 

Cada um soube dos seus territórios
e fomos razoáveis. Impossível
é partir uma pedra ao meio: levaste-as todas;
e afinal, bem vistas as coisas,  todas eram tuas. 

Filhos não tínhamos             e amor
nunca quiseste arranjar nenhum.
Tinhas razão; dava muito trabalho
e ocuparia muito espaço num peito
tão pequeno. 

Houve objectos difíceis de repartir mas
evitámos pugnas e contendas
como outros casais com tristezas
ainda mais tristes
do que a  nossa tristeza 

casais, disputando a mobília,
a conta bancária, o televisor… 

Aí, terás de concordar,
fui magnânima... prescindi
a teu favor dos vasos das orquídeas,
das magnólias, das náuseas, os fastio de cheiro,
aquele engodo, que regavas com carinho
e fizeras florescer à nossa janela (começava
já a dar os primeiros frutos). Levaste-os:
são teus…eu iria esquecer-me sempre de os regar. 

Ainda bem
que nos partiste em dois     
levando contigo  a pior parte. 

 

 

GENEROSIDADES II

 

 Como é a tua vida com uma mulher
vulgar, sem divino?
Agora que destronaste a tua rainha
e tu mesmo renunciaste ao trono,
como é a tua vida?

Marina Tsvetáieva (trad./versão de Paulo José Miranda)

 

 

Como é a minha vida   agora
sem um homem vulgar? 
Mais triste, não?... 

Triste  como perder o chão
de um sorriso espúrio ou
a alegria exígua da noite
extinguindo o dia.  

Nem que seja por um instante (um fósforo ardendo)
quando se toca o zénite da cegueira
até ao raso  de um poço fundo;
depois de alcançado o imo pródigo  
de um coração corrupto e descomposto    
como saber regressar, voltar atrás... 

Esterilizar os lençóis    a pele poluída? 

Como vivo agora sem esse homem vulgar e
sem divino, que circulava como sísifo
carregando a pedra da banalidade
às costas? 

Há que voltar atrás,
negar gomorra, sacudir o sal
do corpo e acolher de novo
a lucidez  puríssima
das manhãs do Olimpo.  

Eu, Madalena de rastos, 
cumprindo com desvelo
a plenitude do amor mais frívolo 
a  transcendência de uma paixão asmática.  

Respirando, num silvo agudo, a poalha de vidro,
aspirando a bomba, a falta de ar, minuto a minuto,
vencendo cada beijo a cortisona.  

E os  coágulos do sangue coalhando
no coração sublime. 

A minha vida, agora, sem esse homem vulgar:

Ser  Helena em Tróia,
subindo, sem esforço,  ao pedestal,
mármore precioso de carrara,
minha pertença, de onde
houvera tombado para ir habitar
o trono plástico de um homem       vulgar. 

Como é agora, a vida, sem esse homem?

Melhor, não?

Voltei a dançar descalça

sem medo de ferir a palma dos pés
com o engodo espinhoso   do fastio
dançando entre os meus
a música livre clara e límpida dos vitrais  

O peito colado ao coração dos deuses...

Acima de tudo melhor, muito melhor,
do que essa mulher, pobre mulher sentada,
agora, a seu lado no tamborete grosseiro de verga
onde se descansam os homens
banais.  

Desventurada  penélope, pobre, tão pobre
esperando e esperando, quase velha, as costas
curvas sobre o tear, as mãos ásperas e tesas
bicadas da costura, sonhando ulisses
já repassado por todas as mulheres
todas as deusas   feiticeiras --até por mim 

Melhor, bem melhor, que essa mulher mortal
fiando em sonhos um ulisses qualquer:
Qualquer um lhe serviria, mesmo  que velho,
senil,  imundo, sem cabelo
mas ainda assim, ulisses, com a cicatriz
encardida no tornozelo.  

Pobre mulher em Ítaca, tão só, tão pobre,
roendo a tristeza da ilha a pobreza do sal  
o mar  em redor   só sal em toda a volta,  

Pobre mulher tecendo ulisses
que afinal não veio: nunca virá
(e qualquer um lhe serviria
desde que lhe chegasse com os ventos
vinte anos, trinta anos, cinquenta:
esperaria quanto tempo
os deuses lhe concedessem) 

Triste penélope nenhum ulisses, nem argos, pretendentes,
mulher vulgar sem trono, a teia feita por mil vezes
e desfeita por outras tantas mil,
desacorçoada penélope  as mãos em sangue
os olhos quase cegos bordando noite dentro 

velha mulher ainda jovem, gengivas nuas
acolhendo o único afogado inútil
que deu à costa inânime, encalhado
num enredo de lodo e limos
arrastado pelos mares.  

Um homem rude, vulgar, com a ferrugem
expressionista dos dedos esfolando-lhe pele
como se fora carícia. 

E a minha vida? Era isso que perguntava.
Como é a minha vida agora sem esse homem?
vulgar? 

Melhor.
Muito melhor, não?