3 poemas de 'Prata' de José Pedro Moreira

desabar de pontes
derrames nas pernas
desalinho do cabelo com toques de prata
ela
Gugu
ainda que coxa
é um bosque cego
à espera
de uma faúlha

triciclos esquecidos no quintal
oxidados
as rodas rangem
se as tentas mover no seu eixo

em frente
sempre em frente
Gugu
até no nosso
velho triciclo
para lá de conserto
o progresso
é inevitável


Gugu
a casa abate-se
tudo cai em nosso redor
lá se vai o candeeiro da vovó
o relógio de cuco do vovô
o sótão
com todos
os caixões lá arrumados
os quartos das crianças
a possibilidade
de haver crianças
ao menos agora
sabemos com o que contar
só tu e eu
Gugu
ao menos agora
podemos
dormir em paz
achas que voltarão agora
os lobisomens
com os seus
corações de prata
os beijinhos retorcidos
as jogatanas de cartas
levadas até à nudez?

eles têm
as suas mulheres
os seus trabalhos
os seus homens
e está certo
todos precisamos
de distracções
se estivéssemos atentos
víamos o carro
a atropelar o veado
e o veado
somos nós
e de nada vale a ternura
apelos filiais
a probabilidade
de estarmos em falência
em luto constante
excepto
nos dias de festa
nos dias de festa
queimamos ateus


sim
finalmente
por demais óbvia
a espessura da tinta

negra

o pássaro
também ele negro
bebe da taça
onde repousa
a nossa canetinha

contemplamos
o espectáculo

a primeira
das crias
que o gatinho trouxe
estava morta
mas a segunda
vivia ainda
pouco depois
o corpo
imóvel e frio
nada a fazer
o corpo no saco
como mais
um pedaço de lixo
não reciclável


José Pedro Moreira, Prata, Flan de Tal, Setembro de 2022

5 poemas de "Porque Canta um pequeno coração", de José Pedro Moreira, lidos pelo autor e por João Concha

É fácil perceber quem leu quais: as leituras expressivas e claras são as do João, o tipo com má dicção e que ainda por cima murmura os poemas sou eu (José Pedro).

E alguma publicidade:

Amigos do Porto (e arredores): se puderem venham à leitura conjunta, com a Francisca Camelo, a Mafalda Sofia Gomes e o Vítor Teves, na próxima sexta-feira, 4 de Outubro, pelas 17h30 na Flâneur. Mais informações aqui.

Amigos de Lisboa (e arredores): se puderem, venham à apresentação do livro, no próximo dia 5 de Outubro, pelas 18h30. A apresentação estará a cargo de Elisabete Marques, e contará com leituras de Tatiana Faia e Victor Gonçalves. Mais informações aqui.

Fernando Machado Silva lê quatro poemas do seu livro 'Para um outro dia Lázaro'

Pedro Braga Falcão, Os Poemas Fingidos

poemas cover ok.jpg

Pedro Braga Falcão
Os Poemas Fingidos

Poesia

Enfermaria 6, Lisboa,
fevereiro de 2018, 168 pp.
Capa de Gustavo Domingues E StudioPilha  

12€

Como comprar
Envie-nos a sua encomenda para:
enfermariaseis@gmail.com

Oferecemos os portes de envio em compras para Portugal Continental.


Nunca souberam mais nada:
inventar que o dia continua.
Decerto solenes procissões, enredos,
preces e votos, e bairros ermos
fizeram para consagrar à ilusão
a luz que ela nunca teve.
Para quê? Para que um dia
pudessem fingir que o sol não importa.


_MG_6271.jpg

Pedro Braga Falcão

Pedro Braga Falcão é um poeta nascido de pais açorianos no final do século passado. Talvez por isso ensine línguas clássicas e história das religiões, e insista em traduzir poesia com mais de dois milénios. Como a infância e a juventude foram passadas numa aldeia que ninguém conhece, teve tempo para se tornar também músico. Como seria de esperar, é violetista e especializou-se em música antiga. Por vezes tenta manter-se no seu século ou, em alternativa, no sítio em que vive. A literatura que escreve e publica têm-no ajudado nesse sentido, sem grande sucesso.

Dois poemas de INCÊNDIOS, o novo livro de João Miguel Henriques

João Miguel Henriques, Incêndios
não edições, dezembro 2016
Encomendas: nao.edicoes@gmail.com

As feridas, com a nossa idade

saram lentas as feridas com a nossa idade
os golpes todos fecham só a custo
e devagar cresce a crosta sobre a carne
e como tarda a cair com a nossa idade
os meses que demora, são esperas longas
e a pele com a nossa idade após a crosta
já não é pele como dantes renovada
mas cicatriz dos nossos anos, da nossa idade
marcação de ferida lenta e pena funda
de funda ferida que a idade já não cura


Canção de infância

já noite dentro vimos então um sapo
um vulto escuro e lento
destacado contra o murete caiado
à luz mortiça de uma lua nova

só dias mais tarde, semanas
lembrados do sapo gordo e nocturno
nos veio à cabeça a tal cançoneta de infância

e o batráquio animal, de boca torta
pareceu-nos já outra coisa

o tempo

aquele olhar
a existência

tudo comeu
nem ofereceu


Lançamento do livro terá lugar no dia 20 de Dezembro pelas 21:00, no Bar A Barraca, Lisboa. Ver mais informação aqui.