Utopias vs. Heterotopias

La bibliothèque en feu, Vieira da Silva

La bibliothèque en feu, Vieira da Silva

Há uns dias, o filósofo francês Bernard-Henri Lévy disse que vivíamos pela primeira vez numa era sem esperança. Não sei se será bem assim, acho que houve outros momentos onde a luz parecia, depois de um grave declínio, esgotar-se definitivamente no presente. Porém, sinto que as crises ambiental e social actuais, mistura, heteróclita, de aquecimento global, perda de biodiversidade, sobrepopulação humana, migrações desreguladas ou querela de egos presidenciais, adensam as trevas.

Há uma história apócrifa do mito da caixa de Pandora (resultado de erros ou desvios nas sucessivas traduções) que inverte a narrativa da desgraça: o problema não teria estado na libertação dos males da caixa, mas no ter ficado lá o principal, a esperança. Resguardada, manteria o seu poder de perpetuar as crenças infundadas em dias melhores, uma espécie de alucinação optimista. Sem ela a humanidade teria desistido há muito, extinguindo-se jovem e bela, seguindo o imperativo ético da Grécia Homérica.

Como sabemos, os mitos dizem mais sobre a psicologia humana do que sobre a realidade que supostamente descrevem e avaliam. Somos, pois, animais estruturados, antropologicamente, em torno da esperança. As religiões e as bolsas financeiras, a política e a subjectivação, o enamoramento e a vendeta... vivem animadas pela esperança, que, deixem-me ousar, é mais primordial do que as pulsões sexuais freudianas ou a vontade de potência nietzschiana. É o magnetismo de um futuro amniótico, onde a vida de cada um e de todos estivesse totalmente imunizada.

É por isso que a utopia, distorcendo-se o sentido literal de “não lugar” para “bom lugar”, não cessa de nos obcecar. Ela alimentou a demanda do possível-impossível ao longo da história da cultura ocidental, força da imaginação em vista da inovação, espiritual e material. Paradoxalmente, nunca se desconfiou tanto dela como hoje, como nunca se empreendeu uma desmistificação tão firme da sua intrínseca bondade. Vivemos, para o bem e para o mal, na era da suspeita, talvez da hipersuspeita, revogaram-se o optimismo ingénuo e a idolatria do progressismo, até porque muitas utopias se transformaram, patologicamente, em distopias. Diz-se que o “tempo dos crentes cedeu o lugar ao dos críticos”. Às crises de que falei acima, junta-se uma contenção do campo irracional que perseguia, fanaticamente, a perfeição, a “cidade ideal”, vista agora como uma ideologia opressiva (a queda do comunismo estalinista e a vigilância massiva do pseudo-comunismo maoista, ou chinês, e das polícias secretas ou de mega redes sociais um pouco por todo o mundo influenciaram esta visão) deu lugar à “cidade do bem-estar”, houve uma domesticação dos possíveis. Resta saber se este realismo, um pouco triste, talvez demasiado prudente, vai perdurar ou é apenas uma paragem para que o sopro idealista descanse até ganhar novo alento.

Para ultrapassar o impasse que a desilusão utópica criou na vontade sonhadora da imaginação talvez possamos recuperar, pelo menos parcialmente, à maneira de um roubo selectivo, o que Michel Foucault escreveu em 1967 sobre heterotopias (“Des espaces autres”, autorizado para publicação em 1984, in Dits et écrits), esses outros lugares possíveis, mas esquecidos ou desvalorizados. Se as utopias são sempre “lugares essencialmente irreais”, as heterotopias foucauldianas mantêm uma relação tangível, ainda que complexa, com a realidade. São lugares afetivos, uma “espécie de utopias efectivamente realizadas”, simultaneamente distantes dos lugares habituais, mas passíveis de serem localizados e habitados.

Nesse texto Foucault enumera os jardins, os cemitérios, as prisões, os lares da terceira idade, os museus, as bibliotecas, os barcos... Mais do que caracterizá-los com a devida profundidade, Foucault pensa na criação de uma nova disciplina capaz de estudar as heterotopias, uma disciplina sonhadora, ou melhor, uma disciplina dos lugares sonhados, como em Nietzsche havia uma ciência do prazer, uma Gaia Ciência, que seria ao mesmo tempo uma ciência prazerosa e uma ciência do prazer (prefiro o “prazer” à “felicidade” por ser um termo bem menos teológico).

Numa abordagem sumária, refere o carácter universal das heterotopias. Primeiro, nas sociedades primitivas, heterotopias de crise, “lugares ou sagrados, ou interditos, reservados aos indivíduos […] em estado de crise”: adolescentes, mulheres com o período menstrual, grávidas, velhos... Estas heterotopias ainda subsistem, mas no essencial foram substituídas por heterotopias do “desvio”, aquelas onde se instalam os indivíduos à margem da normalidade.

Foucault vai apresentar mais cinco princípios, contribuindo para o esboço da nova disciplina sobre o espaço (que nunca chegou a desenvolver). Não é tanto isso que agora me interessa, quero antes pensar, num pequeno vislumbre, a necessidade de cada um de nós, pelo menos os mais iconoclastas, encontrarmos e cuidarmos, cuidando-nos, das nossas heterotopias. Esses outros lugares, um pouco de crise (é a nossa condição viver nela), um pouco de desvio. Lugares – jardins ou cemitérios, florestas ou esquinas de ruas, quartos de pânico ou cascatas isoladas –, que serão as nossas “utopias efectivamente realizadas”, onde a singularidade se poderá contemplar sem vergonha ou distrações e onde se comunicará com alteridades normalmente censuradas pelas forças da banalidade (Platão ou Kafka, por exemplo). Para mim, escolho a biblioteca, a de casa (pequena mas significativa), a de amigos ou pública. É nesse heterolugar que encontro a verdadeira espessura do tempo, preenchido por ideias luminosas e personagens resplandecentes, cheias de erotismo conceptual ou de força ficcional, é nesse lugar que adquiro o poder da emancipação. Aí, lugar de crise e de desvio, sou contaminado por um prazer que se assemelha ao das brincadeiras sem fim da infância. E, por isso, emerge o melhor que vive em mim, nesse lugar sou o melhor ser do mundo.

Ascensão

1

a Sr.ª Bouvard
decidiu organizar
um festival de poesia
e pediu-nos
um saco de livros
pagamos os portes
e devolvemos
todos os que não forem vendidos
nós dissemos
ok

2

o evento foi um sucesso
um urso foi domesticado
por uma leitura a capella
de The Wasteland
houve fogo-de-artifício vegan
e uma competição
onde os concorrentes
recitavam de memória
poemas de Herberto Helder
enquanto comiam malaguetas
o vencedor
recebeu um voucher
para uma sessão de spa
e foi levado em triunfo
ao hospital mais próximo
tarde demais
lamentou um cronista
no jornal local
só a acção rápida dos bombeiros
impediu
que o fogo alastrasse

3

todos os nossos livros
ficaram por vender
e ainda estamos à espera
que os nos devolvam
no seu lugar veio
uma mensagem
da Sr.ª Bouvard
quase um ano depois
estamos a organizar
um festival de poesia
não nos querem enviar
um saco de livros?

4

o muito aguardado
tomo poético
da Sr.ª Bouvard
viu por fim a luz do dia
causando enorme comoção
entre os guardiães
da Palavra Poética

houve quem rasgasse
a camisa metafórica
e bramasse
aos céus metafóricos
o dia puro e claro
foi defenestrado
ototoi popoi da!
a Palavra Poética
precisa de ser purificada

5

mas o que fazer?
até o coração mais puro
precisa de directrizes

sacrifício humano?

hecatombe?

pelo menos
uma queimada de livros?

os tempos já não estão
para essas coisas
o que importa
é que nos sintamos bem
connosco próprios
decreta o oráculo
com mais seguidores no youtube
e depois ensina
como colorir
dentro das linhas

6

por isso na edição seguinte
do festival de poesia
improvisou-se um altar
e a Sr.ª Bouvard
em vestes de sacerdotisa
presidiu à cerimónia
lendo um poema do seu novo livro

aquele com o verso
tra la spiga e la man qual muro è meso?

no final
houve sessão de autógrafos

Morte da tragédia e outros (ir)racionalismos

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Friedrich Nietzsche não se cansou de criticar o Iluminismo grego, cujo paradigma foi Sócrates (que é muito mais do que uma singularidade, neste nome está a grande personagem filosófica de Platão e a realidade nascente, pós-homérica, da Grécia Clássica). O seu racionalismo optimista tiranizou o mundo através da lógica e da moral (a superestrutura verdade=bem). O trágico, naturalmente inverosímil e desenhado para o culto do sofrimento, foi combatido a golpe de silogismos. Em O Nascimento da Tragédia, 1872, Nietzsche, intempestivo, mas um heterodoxo lúcido, rebela-se contra um Ocidente nascido e criado a partir desse Iluminismo. Nele a filosofia também demanda a felicidade, a vontade de verdade, de tudo conhecer, é a esperança da Realidade incarnar na realidade (ou vice-versa). Mais tarde, no Crepúsculo dos Ídolos, 1888, regressa ao tema em “O Problema de Sócrates”, assegurando que este inventou a tirania racional contra o predomínio dos instintos, elevando a racionalidade até ao absurdo, uma racionalidade a qualquer preço, irrealista, fria, oportunista. Pelo contrário, Nietzsche pede-nos para não recuarmos diante da imaginação, por mais aterradora que seja.

Não é por isso, contudo, que se deve remeter imediatamente Nietzsche para um irracionalismo insolúvel. A sua obra testemunha bem a vontade de ser ainda mais claro (um claro-obscuro) do que a razão Iluminista. O que ele não faz é deixar-se iludir pela auto-suficiência e pelo autocontentamento das racionalidades científica e filosófica, ou censurar o ilogismo intrínseco, orgânico, da vida e o carácter interesseiro das nossas práticas cognitivas (critica várias vezes a máxima de Espinosa “Não rir, não lamentar, nem amaldiçoar, mas compreender” – Non ridere, neque lugere, neque detestari, sed intelligere –, apelida esta visão de “charlatanismo matemático”, visto que o ser humano, numa posição reinvestida há pouco por António Damásio, não conhece sem emoções e sem o corpo). Nietzsche não repudia, pois, a razão, quer antes aprofundá-la até a tornar plenamente crítica (sabendo que só o sobre-homem o conseguirá), superando o criticismo kantiano. Claro que neste processo se insinuam vários perigos (de tanto questionar o alcance da razão podemos acabar rendidos a uma espontaneidade estéril ou a aceitar emotivismos exacerbados, violentos ou pusilânimes), mas julgo que neste autor, ao contrário do que se pensa, há uma boa convivência entre o racional e o emocional, a mente e o corpo, foi isso que lhe permitiu ser um magnífico leitor do seu tempo (antecipando os nacionalismos mortíferos, o domínio da cultura pop, o poder do não-consciente, os movimentos fascistas...). O que Nietzsche recusa à racionalidade é o monopólio da significação, já que para compreender são necessárias as emoções e o contributo fisiológico do corpo (a que ele chama, em Assim Falou Zaratustra, “grande razão” – “Der Leib ist eine grosse Vernunft”). Isto permite-lhe atender à mudança, ao flexível, à novidade e à resiliência.

Curiosamente, André Malraux apelida elogiosamente Nietzsche de “o maior irracionalista do seu tempo”. Num diálogo com o realizador Jean Vilar em 1971, refere que Nietzsche não se deixa colonizar por ideologias, que nem o nazismo o conseguiu: “a grandeza de Nietzsche é a sua potência irracional, a extensão do seu pensamento.” Martin Heidegger, em Caminhos de Floresta, “A Palavra de Nietzsche ‘Deus Morreu’”, usa Nietzsche para expressar uma das suas teses mais glosadas: a razão, tão venerada, é afinal a “mais obstinada opositora do pensar”. Portanto, em vez de, como eu, valorizarem o racionalismo, o outro racionalismo nietzscheano, Malraux e Heidegger, podia também citar Georges Bataille ou Pierre Klossowski, realçam a importância do seu irracionalismo, único e revolucionário.

É talvez também aqui que, mudando-se o que tem de se mudar, encontro João Barrento e o seu magnífico A espiral vertiginosa – ensaios sobre a cultura contemporânea (Cotovia, 2001). Regressando ao eterno tema da morte da tragédia, Barrento segue Nietzsche na denúncia da perda irreparável para a vida humana decorrente da quebra do compromisso estético com a tragédia. Os gregos sabiam bem que as tragédias eram somente performativas, não havia aqui qualquer ingenuidade. E sabiam também que a potência da ficção, a superioridade da imaginação, ontem como hoje, se insinua profundamente nas linhas da vida. Ainda agora, depois de séculos de vacinas lógicas, choramos sob os efeitos de um filme lamechas. Os gregos foram os primeiros espectadores estéticos, e isso perdura, o Ocidente é o berço da ficção, esta alimenta uma parcela importante do mundo (numa situação diversa, como é que o Game of Thrones poderia ter tanto sucesso?).

É por isso que Barrento tem esta brilhante oração fúnebre, que podia ter sido escrita por Nietzsche: “No mundo de paixões que era o da tragédia antiga, a dor – tal como a beleza e a alegria, o canto e o êxtase –, é matéria-prima da vida ritualizada. Depois, a vida foi-se dessacralizando, tornou-se mais confortável, mais baça... e mais longa. Ficámos mais sós. Sós, não porque nos faltassem os outros, muito pelo contrário. Ficámos sós porque fomos amputados de alguma coisa que era parte de nós. O homem civilizado olha para o mundo, o mundo está em estado de dor quase permanente, e em vez de responder com um lamento (como terá feito nas origens a natureza, antes de perder a fala), fica em silêncio.” (A espiral vertiginosa – ensaios sobre a cultura contemporânea)

A arte para a vida

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Goya percebe, bem antes dos pensadores do não-consciente, que no humano vive, mais ou menos escondido, o inumano. Representando-o, como nesta obra, pelo risível ou pelo cruel (El 3 de mayo, 1808)

Theodor W. Adorno, filósofo, musicólogo, compositor... alemão disse em 1949 que “escrever um poema depois de Auschwitz [era] bárbaro”, justificando isso a ideia de que se tinha tornado impossível escrever poesia (Adorno alargava isso a toda a arte). Entretanto, a frase foi descontextualizada e reduzida à condição de uma sentença, esquecendo-se que Adorno tem um pensamento cheio de nuances e que queria, num tempo de grandiosas euforias, recordar aquilo com que os vencedores evitavam confrontar-se: o abismo do holocausto. Na verdade, na segunda grande Guerra a pretensa vitória da civilização sobre a barbárie escondia a dificuldade de se continuar a confiar no ser humano, não apenas nos nazis ou fascistas em geral, mas em todo o ser humano (a continuação da história viria a dar-lhe razão). As contas com o passado ainda não tinham sido todas feitas, era preciso colocar a questão sobre a possibilidade de se escreverem ou não poemas, produzirem ou não obras de arte. Era mais disto que se tratava do que formular um interdito simplista.

De qualquer forma, muita tinta correu sobre a afirmação, e Adorno regressou várias vezes a ela, nomeadamente num curso que deu em 1965 (Metafísica  – Conceitos e Problemas). Aí começa por se surpreender com a polémica que aquela frase tinha suscitado. Escrevendo filosofia, diz, nunca se exprimia de modo completamente literal, tanto mais que ela não revela factos, mas indica tendências. Assim, desmontando as interpretações lineares, e moralizantes, do que tinha dito, assegura que é preciso escrever poemas, no sentido em que Hegel, na Estética, defende que enquanto houver consciência do sofrimento nos homens, deve igualmente existir arte como forma objectiva dessa consciência.

Também isto precisa, se quisermos ser fiéis a Adorno, de ser nuanciado, e o muito que dirá naquele curso e depois disso, sobretudo na Dialéctica Negativa e em textos que farão um livro póstumo (Teoria Estética), revelam uma continuidade de pensamento mais do que uma inversão. Adorno manteve o pensamento de que a cultura pós-Guerra não tinha feito o único gesto possível para se resgatar da cumplicidade, ainda que relativa, com a barbárie: reflectir, de múltiplas formas, sobre o holocausto. Por isso, a cultura pós-Auschwitz era um “monte de lixo”, vivendo num insuportável autocontentamento e raramente ultrapassando o patamar da banalidade. Portanto, mais do que a formulação simplista de um interdito, as sombras de Auschwitz deviam impor um pensamento e uma acção que levasse às últimas consequências a dialéctica da possibilidade-impossibilidade de se escreverem poemas (ou produzir outras obras de arte).

II

Outra interpretação (que não se afasta totalmente desta prova estético-moral) permite pensar que aqui se joga a vida sobre a arte. A arte não pode estar acima da vida. Neste caso, os poemas, e a arte em geral, deveriam obrigar a pensar se ainda era possível viver depois de Auschwitz, e não, como pretendia Kant, provocar um prazer sem explicação conceptual.

Esta linha vitalista (chamemos-lhe assim para abreviar) é, claro, anterior a Adorno. Por exemplo, toda a obra de Nietzsche, mesmo quando diz, ainda a começar a sua vida de polemista, que é preciso fazer da vida uma obra de arte (O Nascimento da Tragédia, 1872), vai nesse sentido: a arte só tem valor se estimular a vontade de viver (daí as críticas, por vezes injustas, ao niilismo wagneriano), sobretudo quando as condições parecem favorecer os ideais ascéticos (essa recusa do tangível, trocando o corpo pela alma, a vida pela morte).

Não querendo maçar-vos muito, deixem-me dar alguns exemplos, que talvez tenham ido beber dionisiacamente ao materialismo metafísico nietzscheano, sobre uma recomposição essencial da arte no século XX que vai ao encontro das pretensões de Adorno. Não completamente, é verdade, mas toca naquilo que suporta o pensamento do filósofo alemão: que humanidade é esta? E com isso desloca a questão da obra de arte para a vida, pergunta ao mesmo tempo pelas condições de possibilidade do viver e de quem vive. Num certo sentido, retoma e prolonga Kant (Crítica da Razão Pura) ao perguntar o que “devemos fazer” e o que nos “é permitido esperar”. Isto é, que humanidade somos e que humanidade queremos vir a ser? Os artistas que escolhi não abrangem totalmente essas questões visceralmente filosóficas, mas deformam bem os preconceitos antropológicos, abrindo uma espécie de caixa de Pandora sobre o que é ser homem, dirimindo as certezas, científicas e morais, que um antropocentrismo acrítico incrustou até à mais ínfima parcela da nossa existência. Assumindo as catástrofes históricas, mas também psíquicas, subjectivas, a catástrofe da subjectivação, isto é, da formação e consolidação do sujeito.

Lucian Freud emite novos sinais sobre o corpo humano, não é a alma, ou um interior intenso e quase sagrado que quer mostrar, mas novas possibilidades do corpo. Para isso desfaz padrões, reais e imaginários. Parece regressar às antecâmaras de Auschwi…

Lucian Freud emite novos sinais sobre o corpo humano, não é a alma, ou um interior intenso e quase sagrado que quer mostrar, mas novas possibilidades do corpo. Para isso desfaz padrões, reais e imaginários. Parece regressar às antecâmaras de Auschwitz, aos corpos que se desnudavam sem qualquer erotismo, aos corpos-objectos entre a vida e a morte. Neste caso, os lábios de Kate Moss guardam ainda pulsões sexuais, mas esse destaque talvez queira realçar, em negativo, o resto de uma cara que é sobretudo um complexo biológico preparado para envelhecer e morrer.

Francis Bacon não faz qualquer concessão ao belo, são verdadeiramente os demónios humanos que lhe interessa pintar. Esses que nos habituamos a ocultar para que tudo corra pelo melhor. O que expõe rememora os piores momentos da história, não os acide…

Francis Bacon não faz qualquer concessão ao belo, são verdadeiramente os demónios humanos que lhe interessa pintar. Esses que nos habituamos a ocultar para que tudo corra pelo melhor. O que expõe rememora os piores momentos da história, não os acidentais, mas os que marcaram as esquinas do rectângulo onde está a humanidade.

Edward Hopper coloca corpos no meio do nada, a sós consigo mesmos. A espera vã que parece suportar a maioria das suas obras, pode ser projectada em diferentes situações dos campos de concentração nazis. A espera vã traduz-se em falta de esperança, n…

Edward Hopper coloca corpos no meio do nada, a sós consigo mesmos. A espera vã que parece suportar a maioria das suas obras, pode ser projectada em diferentes situações dos campos de concentração nazis. A espera vã traduz-se em falta de esperança, numa sobre-concentração ensimesmada que torna insuportável o exterior e, sobretudo, a interioridade. A partir disto, creio compreender a extrema docilidade de judeus abatidos com um tiro na cabeça ao pé das valas comuns que tinham acabado de abrir.