Isabela Rossi: 5 momentos

*

não dá pra confiar em muita gente
mas eles me deram
cigarritos
eu fumei calma
e o menino de 12 anos
tocou firme pra mim
aquele fort piano desabado do céu
não era detroit
desvio de caminho o
trem pra jurubatuba
encharcou de gente
tive que saltar pra deslumbrar
no bico da nuvem
cara e cotovelos
rasguei o manto pietá
e dei de lágrima
com a patti smith e seu anjo
olhos cor de chumbo

*

meto cansada
e não alinhavo os pássaros
alguns dias sangro
olhos de urtiga
tudo arde
nesta ferida
eis me aqui
o verso ruim
A carne viva
e no incêndio da
artéria aorta
um aviso
o abutre que não ouse
pousar no meu poema

**

vontade de chorar não é nada
lágrimas de um crocodilo alucinado
Não tenho feito nada de errado nesses
espelhos lago alquebrados
só analiso o
rastro de cardumes
e uma mancha de barro
colada no ambar flutuante
daqueles rios que lavam mar
mores de madonas e os
coturnos lábios
línguas viajantes de um país
incomum

*

Entre o Lobo da Estepe
e o Lobo do Mar
eu sou a raposa
branda
aquela
- queen of
uma cerejeira em flor -
a Instinto-poesia,
atiçar.

**

um canto

dos pássaros
honradas todas as plumas
rimos com dentes de nada
próximos choramos
Grandes telas de cinema
estações de tratamento
As ratas de esgoto também não conhecem aberto
o céu
Toquemos pra elas, Viviane
Com as palavras no azul
o violão cello
em comum nós temos um coração
patas
e pêlos cheirando azedo
ou sangue
quando a chuva infiltra
palcos planos
porões cândidos
Todos
desertos loucos da nossa alma

Inês; A planta; Tarkovski

 

INÊS

Inês deu para vomitar pregos
e arames farpados nas noites de lua cheia

Em sua garganta pigarreava
a ferrugem, parafusos e a crença em deus

rezava cuspindo tétanos, salmos
                             e porcas espanadas


Inês era tão bela.

 

A PLANTA

Esta planta está conspirando
em nosso silêncio?
Alimenta-se do quê?
De tragédias, chacinas,
Sombras ensangüentadas,
Esgotos disformes de fuligens
                                  e parafusos?

Ora, esta planta não deveria
resistir
Não deveria suportar tamanha
hostilidade
Não poderia abrir tanta copa e pétalas
e cores nesse sombrio
                                   cinza

Desafias a paisagem?
Afrontas nossos olhos mesquinhos
e cada vez mais rudes?

Multiplica-se qual erva-daninha
sobre o leito estático
                               desse rio avesso?

É urgente eliminá-la.

Cortem-na, desde já,
                             pela raiz
Com golpes secos, precisos


para arrancar-lhe qualquer beleza possível.

 


TARKOVSKI

A casa em chamas
Janela enclausurada nos olhos vermelhos
A mulher põe a manhã no chão
Entre arbustos e palavras
Descosturamos o silêncio

Quatro poemas de Jorge Miranda

 

BILDUNGSROMAN 

Deste vocabulário-órfão
se escreveu o mundo: 
ser educado tirar boas notas
fazer poemas encomiásticos
aos parentes e às visitas
depois
ascender ao sótão
e continuar a mobiliar
o silêncio decorá-lo
com cortinas bonitas
por na entrada um
carpete onde se possa ler
seja bem-vindo.

 

MERITOCRACIA

Ser educado com o mundo
me rendeu muitos triunfos: 
ser chamado de viado bixa
gay boiola vinte-e-quatro
afetado quadrado homem- 
do-século-dezenove livro- 
de-literatura-com-português- 
arcaico
foram alguns deles. 

Minha bisavó teria orgulho
do antimonumento que ela ergueu: 
a cordialidade e o fracasso
em pessoa.

 

O ENTERRO

Enterrar um piano é muito mais fácil na primavera
quando os cachorros estão em silêncio
quando as paredes estão limpas
e os cadeados estão abertos.

O difícil
o realmente difícil
não é ter um piano
ou cavar um buraco de dimensões tão
violentamente consideráveis nas quais se torne
não só plausível mas possível enterrar um piano
ou ter forças suficientes para, após ter retirado
tanta terra, ainda estar disposto a cumprir
a responsabilidade recíproca de lançar novamente
tanta terra retirada de volta ao lugar onde
por numerosos dias ali permaneceu disfarçadamente
intacta e que, até então, era chamado de chão
ao invés de ser chamado de buraco e, agora,
ser chamado de cova.

O difícil
o realmente difícil
é perceber em que momento do mosaico do mundo
está a primavera
e se nela ainda reside a licença necessária
a desfaçatez conveniente a polidez exigida
frente ao luto e à melancolia dispensados
a um piano que acaba de ser enterrado.

 

A PIADA

Aquele que melhor riu de si
nem sequer deve ter entendido
a piada. Só de ter desci- 
do a essa condição do vivido, 
a esse plano pré-concebido
de etcéteras – vulgo existência – 
supôs como prêmio recebido
um prévio atestado de falência
múltipla de todos os sentidos. 
Pois é: tal piada é antessala
de outros tantos indeferidos
ais. Melhor cavar a própria vala.

Dois poemas de Cecília Donateli

Te regalaré un abismo, dijo ella
Roberto Bolaño
 

Em uma falha do psicossoma
eu te conheço dez anos antes
Teus olhos apesar de ainda serem
os teus olhos têm a veemência
dos espadachins
Secretamente eu os quero assim
sonoros para sempre  

DASEIN
 
Uma memória nasce porosa
na confusão da carne. Como se dissesse
esses são os teus novos fios
de Ariadne – enquanto trança com dedos
ardis uma & outra cartilagem
à soldadura. Cada nó é parte de ti, 
à parte de ti e sobrevive-te. 

Uma memória
é uma longa
carícia – 

por detrás do frame
ninguém viu
mas era um tigre faminto
que te movia. 


7 poemas de Marta Pais de Oliveira

EMERGENCY USE ONLY   

Vou na saída de emergência
vendo as nuvens rasgadas por nós
quando estico a mão para receber
a informação que diz: se não se sentir
capaz de ser responsável pela evacuação
de emergência, peça outro lugar. 
Mantenho-me imóvel e olho
a porta ao meu lado
pull, exit
– parece ser fácil
salvar um pouco de
humanidade

 

PUPILA

Dilatou a minha pupila e eu olhei-me no vidro para
vê-la crescer como um poço negro para o interior de mim e
a íris desapareceu, eu desapareci num círculo que cresceu tanto. 
E houve primeiro o susto de ver tudo desfocado
depois o prazer de ser uma névoa entre todas as névoas
foi o que pensei quando me chamaram ao consultório – 
mediu a pressão do meu olho, avaliou a pupila dilatada
apertou-me a mão – apertou-me a névoa de mão. 
E levei na carteira a receita e no olho a alegria de tudo ser
bonito quando é um borrão que imaginamos
poder desenhar melhor. 

 

NECESSIDADES

É necessário algum caos como
gavetas abertas, um garfo entre as colheres
despentear o mundo com toda a certeza
também beijar os olhos logo ao nascer
falo de todos aqueles que for possível, sim
esquecer o que esperar se tudo são
lírios e delírios
e o que há mais? 

É necessária a fúria de uma onda enorme
olha como transforma quem a vê da praia
ou do farol ou do carro
podem ser crianças besuntadas de gelado
podemos ser nós a secar lembranças na pele, somos
e apesar do medo do abismo
queremos vê-lo para contar a todos como é 
mas a nós não. 

São necessárias palmeiras altas para subirmos
a essa ideia que se escondeu no fim de tudo
num sonho dentro de um sonho e outro
onde pedimos licença mas somos selvagens
animais cheios de dúvidas, tantas
– não arrumes o garfo
– não? 
– sim

 

ESTENDAL   

Tens sempre os lábios gretados de café 
- essa é a regra de todos os dias
e de todas as noites redondas. 
Melhor pensar nisso e não em ti
nem quando subimos à rocha quente
para logo mergulhar
ou quando apontaste o dedo à lua
nasceu uma verruga
e eu ri muito alto
demasiado alto
talvez nervos meus de saber
teres defeitos grandes e lábios gretados
que apetecem sempre beijar. 
Melhor pensar no cardume de melros
olha lá, são imensos
e eu ri muito alto, demasiado alto
espantando o horror de
melhor pensar nos pés e não em ti
caminhar sem sapatos
estupidamente encharcados do temporal
e eu que nem reparei que choveu
apesar do estrondo de tudo
e de tu a gritares coisas de silêncio
nos meus ouvidos molhados: 
como a trazer-me à tona
só um sussurro azul. 
Enfim vim à tona e como não lembrar
a onda que era fria
ou estalo de amor
e eu em perigo que corri logo, logo
pendurei-me no estendal
a secar – pareceu-me que sequei
de olhos sempre abertos como os teus
não cair nos teus olhos, não
melhor pensar
que toda a gente nasce
mas tu nasceste mais
e como não pensar em ti? 
Toda a gente nasce
mas tu nasceste mais
e contigo eu
que ainda pingo dos sapatos. 

 

TAXISTA   

Ensinou-me hoje um taxista
que por vezes basta abrir
a janela do carro
– Para quê? 
abrir os olhos contra o vento
não, foi a favor
– Abrir a favor do vento.   

 

VOLTO JÁ 

Olho uma nuvem disforme  
toda branca e fúria. 

Ou outra coisa qualquer.  
Ponho o dedo no mel,  
mas eu já não sou eu  
quando finalmente é noite  
alta e há um vulto no jardim.  

Posso ser este quarto
minguante envolto  
em ciprestes altos e esguios  
de medo mais do que a noite
e tu ou o próprio poema.  

Talvez um gato a lamber flores,  
a caçar grilos e luares gordos
e eu que só encontro raízes, 
cicatrizes, máquinas de costura  
velhas cosendo pontos absurdos  
e crus. Devia haver janelas.  

Mas eu não lavei o sono dos olhos,  
esqueci-me de acordar. 

Possa talvez ir à mercearia  
comprar meio quilo de tempo. 
Espera um pouco, poema.  
Volto já e trago mel. 

 

ERGUER   

Como erguer terramotos e inundações. Pó, guindastes, ferro
e alguém que diz: mais devagar, por favor. 
Como erguer da barafunda atenção para abrir de noite a janela
sabendo que epopeias e libélulas têm a mesma grandeza. 
Quando nascemos começamos logo a morrer, 
depois há o abismo da imaginação. 
Como aprender a apalpar o fundo das coisas
da sílaba ao clarão. Enfrentar com a mesma esperança
o sublime e o terror. O amor. 
Como fazer crescer o silêncio maior do que uma bomba
e alimentar a hora das corujas que falam dessa
alucinação ou pasmo da escuridão
e como rir do riso porque sim. 
Como erguer da maré a baleia, o osso medido a régua
e esquadro ao compasso da luz da lua. 
Subitamente percebi: não sei se saberei perder o medo de escavar. 
Intrigar-me-á até ao fim dos dias quem dá maiúsculas a
terra mar céu deus
sinal de importância quando o que de maior têm é o quotidiano. 
Dizem que se a ele sobrevivem é tudo
– posso eu?