Otro día... (poemas sintéticos)

En 1919 José Juan Tablada publicó Un día… (poemas sintéticos)1 , una alabanza a la naturaleza compuesta de haikus y estampas circulares diseñadas por él mismo. Decidí reescribir sus poemas para imaginar un día distinto, casi un siglo después, en el que más que una oda, lo urgente es reflexionar sobre la inminencia de una catástrofe ecológica. También sustituí sus dibujos por las fotografías que se mandaron al espacio en el Disco de oro en 1977 (una de las pocas pruebas de la vida en la Tierra que sobrevivirá cuando hayamos desaparecido). Estas imágenes están intervenidas con acetona para emular los trazos originales Tablada y, al mismo tiempo, emborronar la memoria que contienen.

Impresión mecanográfica, fotografía y acetona
16 x 22.5 cm c/u (38)
2017

Camões aborrecido a um canto

“o lado rufia, o lado da moda”

                                João Cutileiro

 

“[…] porque na vida/ ninguém

alcança/ a glória merecida”

                                   Camões  

                                                                                         

Prometeram-me uma festa de arromba,

mas tudo o que vim encontrar foi esta

sala com três gatos pingados e uma

música de carrinhos de choque que não

lembra nem ao menino Jesus! Dou-me

demais aos outros e aqui estou, como

uma estátua de Tatlin, segurando esse

que não é o meu canto. Só me resta

cruzar os braços e esperar, esperar,

esperar, como qualquer bom português,

pela hora ou pelo tempo que nunca

há de chegar. E se chegar, virá tarde!

hhhhh.jpg

João Cutileiro - “Camões”


Metades de uma laranja

I
quando Maria se perdeu 
no deserto 
não sei se seriam
cálices ou ondas
que lhe desciam pelos
seios enviuvados 

II
o tumor da tempestade
arrastou o túmulo da tua cria
levando consigo o calor sombrio
dos rebanhos em negação

III
escreveram nas paredes 
que os pombos tombaram 

IV
o teu filho morreu 
e no fundo dos montes
ouvem-se os gritos das mulheres
ecoando nas bocas dos peixes 

V
esses olhos nunca mais voltarão a cair  
aos seus pés
como mantos pousados aos ombros
das montanhas 

VI
ventre da manhã
os tambores já não tocam 
nesta cidade

Acerca da perfeição

São importantes as memórias de infância
Escrevemos sempre a partir de exemplos
e, durante algum tempo, os factos
confirmavam a vida imaginada

Existia, nesse livro antigo, um fotógrafo
excelente, no lugar do nome estava escrito  
anon, e era o mais distinto autor
Variedade pródiga das paisagens
flores explícitas, animais que estacavam
e exibiam o carácter selvagem
a nudez profunda e nua dos modelos
Os instrumentos da vida estavam 
só cansados de trabalhos
e de dias, abriam-se em sol
e nas devidas sombras

Vem logo alguém esclarecer
tratava-se afinal de uma cifra abreviada
expediente para dizer anónimo
despojos da arte verdadeira

Segundo exemplo, a música
que nos soava muito para lá
do número divino, a esplêndida
sétima daquele a quem chamavam
o enorme mestre de Bona

Logo percebemos que era versão
incompleta e, nos visíveis sulcos do vinil
acrescentaram um andamento
de uma oitava ainda não composta

Isto é, etiquetas que enganam
erros no momento de imprimir

Também se escrevem poemas
acerca da perfeição

Verde Dourado - Haikus 

 

Verde, verde, verde, 

nos olhos  

a Primavera. 

 

Em frente corre 

a humanidade -  

passa o ribeiro atrás. 

 

Silencioso o ribeiro 

corre eterno -  

passam carros na estrada. 

 

Onde estão as sombras 

para os cavalos 

do nosso descontentamento? 

 

Como o Sol na mica 

os teus olhos 

nos meus. 

 

Onde levam a pressa 

todos os pés 

sem saída? 

 

Passo os dedos 

nas páginas em branco -  

vontade do teu cabelo. 

 

Voltar a ter medo 

de todo o futuro 

num desconhecido. 

 

Pequenos salpicos 

as flores no prado -  

o Sol na tua cara. 

 

Neva nos olhos 

da menina -  

flores de cerejeira. 

 

Caem pétalas 

cor-de-rosa -  

leio Han-Shan. 

 

No chão e no passado 

todas as 

primaveras. 

 

Passa anónima 

aquela carne 

tão familiar. 

 

Quantas bicicletas 

e eu só 

no banco de jardim. 

 

Dia raro 

gotículas de suor 

relva aparada. 

 

Passam semanas 

sem sequer 

existires. 

 

Tão longe do Sena 

hoje 

em Montmartre. 

 

Não pode ser verde 

o que sinto 

porque arde. 

 

O vestido verde 

as calças pretas 

olhos nus. 

 

Por quem espera 

ao lado do candeeiro 

apagado? 

 

Tão sozinho  

há dias -  

felicidade. 

 

Vento quente 

na minha barba - 

os teus lábios ausentes. 

 

Chegam as flores 

de cerejeira 

e eu a casa. 

 

Onde foi 

a infância 

dos meus versos? 

 

As árvores 

quase eternas 

porque não lembram. 

 

Pode o Inverno durar 

mas o verde 

regressa sempre. 

 

Sobre o verde 

manto 

a eternidade. 

 

Nos olhos 

a eternidade 

sobre o verde manto. 

 

Gotas frias 

de chuva no pescoço 

até na Primavera. 

 

Há amores que duram 

verões 

outros infernos. 

 

Assenta o pó 

tudo perde 

a clareza. 

 

Depois da última 

cerveja 

tudo sabe a solidão. 

 

Lembro-me do 

David Carradine 

no dia do Anthony. 

 

Uma vida a balançar  

e acabar 

pendurado numa corda. 

 

Quantas voltas 

ao mundo 

no nó da corda. 

 

“Onde deixaste 

o cajado?” -  

ao lado da cegueira. 

 

No vento ouço 

aquela abelha 

à porta do cemitério. 

 

Está no Sol 

toda a vontade 

da iluminação. 

 

Nos beijos  

irrepetíveis 

a eternidade. 

 

Pode não salvar a vida 

a Bic preta 

mas salva. 

 

Quem me sonhas 

quando eu 

ainda acordado? 

 

O descanso 

depois da segada 

o teu púbis. 

 

O arco-íris 

usa apenas uma cor -  

meia-noite. 

 

No céu dourado 

a vontade 

do dia quente. 

 

De quem és 

fome de todos 

os sóis ausentes. 

 

Aqueles dias tristes 

hoje uma alegria -  

chove. 

 

Em cima do muro 

uma brisa quente -  

tempo das cerejas. 

 

Dias frios 

no verão -  

sabor a partida. 

 

Sabem a partidas 

os dias frios 

no Verão. 

 

A beleza do fim de Verão 

apenas no amadurecer 

das uvas. 

 

Quanto mosto 

desperdiçado 

na ausência. 

 

Na escuridão 

o ouro frio 

como qualquer metal. 

 

Chuva de Julho -  

olhos à janela 

da adolescência. 

 

Esconde-se no tinto 

a luz dos dias 

escuros. 

 

No bruxulear das velas 

todos os contos 

da infância. 

 

Abrir uma de Bordeaux 

e regressar 

com a caneta a Paris. 

 

Perde-se a vida 

num cigarro 

ganha-se num beijo. 

 

Temos o tempo 

em que podemos 

contá-lo. 

 

Sonhamos com o tempo 

que acabamos 

desperdiçando acordados. 

 

Dá-me um último 

beijo -  

esqueci o final. 

 

Escrever às escuras 

para encontrar nas sombras 

a verdade. 

 

Vinho tinto 

à luz das velas -  

não anoitece sequer. 

 

Água e luz 

algum tempo -  

nasce a beringela. 

 

Verde que se enrola 

gentilmente 

no esqueleto. 

 

1“Não me odeiem” - 

todas as canções 

um pedido. 

 

Ao fim da tarde 

o cheiro dourado 

do feno. 

 

Primavera- Verão 2018 

 

Turku-Helsínquia