DÍPTICO BUKOWSKINIANO

“Merda para a beleza. Merda
para os poemas bem escritos.”

Rui Nunes – “Suíte e Fúria”

 

para o João Coles

 

                           I

A NOVA FACULDADE DE ECONOMIA

 

Larga a poesia, rapaz!
Deixa o edifício de velhos azulejos e segue para o sul.
Aproveita o bom sol, a praia, o ar
condicionado,
o bom pavimento, a tecnologia de ponta,
as garinas ou
os betos cheirosos.
Gente de bem! De boas famílias!
Deixa a poesia, rapaz!
Segue para sul, muda de edifício.
Tudo o que importa é fazer, ou fingir
fazer, contas. O que importa
são os números!
Não penses muito, rapaz!
Não sejas do contra!
Segue para sul.
Além
é
que
está
a felicidade absoluta. O futuro
radioso:
 

Um bom ordenado, um bonito nome aristocrático,
a boa empresa:
intervalos longos; jogos utilíssimos de motivação; o
convívio com os colegas 24h seguidas; a bolinha
amarela antisstress de mão em mão; o
incentivo à
rapidez e eficiência;
os prémios e o
apelo ao
empreendedorismo.
 
Segue a economia, rapaz!
Isso das letras já morreu.
Não sejas teimoso,
Não esperes o último
azulejo
sobre a tua cabeça.
Não esperes, sossegadamente, o pó.
 
Tudo tem de ser rápido.
Rapidez, pragmatismo, produção.
(superficialidade, secura, pântano)
Produzir, produzir, produzir…
Mas o quê?
Não importa, não importa. A
economia é que importa. Nada mais.
Porque mereces,
dou-te um edifício digno,
remodelado
da unha do pé ao fio de cabelo mais fino.
Um testamento de cavalo!
Cavalo?
Sim, cavalo! Aquele que relinchando,
aprovava, aprovava, aprovava.
 
Deixa as letras, rapaz!
Segue para sul.
Dedica-te aos números.
Dedica-te à economia.
Deixa que os edifícios das letras
caem por completo.
Salva-te enquanto podes!
 
Deixa as letras, rapaz!
 

                                     II

                       JOÃOZINHO

 

Menino, eu, menino,
Vai para a escola!
Vai para a escola aprender
rima.
Vai para a escola!
Usa o esquema rimático,
a metáfora condensada,
o verso longo,
nunca
o
curto,
a
sílaba ou letra
separada da longa e densa
frase. Não, enganei-me, o verso!
Vai para a escola menino,
aprende lentamente tudo
aquilo que terás de
esquecer.
Dirás: Sim, Senhor professor!
Dirás: Presente!
Dirás: Sim, sempre sim.
E passado anos, olhar-te-ás
ao espelho
e verás o boneco de cera em que te tornaste.
Um papagaio
caranguejando,
como um grilo,
os sins ao senhor professor!
Sim, a poesia é só rima,
Sim, a poesia é só métrica,
A técnica, a técnica… Bla bla bla,
Mas que raio!
Que se foda toda essa
lengalenga mentirosa.
Não porque seja má a rima ou a
métrica. É má e mentirosa
essa necessidade
aborrecida de dizer
tudo em filtro! Dizer: a poesia é ISTO,
NÃO AQUILO!
Raios partam, senhor professor,
viril,
machão,
sentado com eles no dito salário!
E eu cansado de tentar,
tentar, tentar, tentar…
Tentar o quê?
Tentar adaptar-me a esse
covil hipócrita, snob,
que cheira a mofo, a baratas, a frases
cheias de virgulas.
Odeio virgulas!
]
Lerão tudo o que escrevo,
digo,
como sendo da mão daquele que
escreve, logo
eu que nunca diria cona,
eu que nunca ofenderia uma mosca!...[
Sim, senhor professor!
Não, senhor professor!
Raios a essas sintonias! Quem? Todos os que
acham que a poesia tem de viver
numa grelha,
que nem sardinha assada.
 
Ai não gostam deste poema? Os meninos da
Catequese não gostam deste poema?
Ai não? Quero lá saber! Pois bem,
só por isso farei 300, só para vos foder o juízo!
Querem um Camões, aos pés de casa,
entregando o pequeno-almoço. Logo eu que
nunca quis ser coisa
nenhuma!

 
Um poema não pode ter
Calão!
]…Puta, cagão, brochista nunca
deve entrar num poema
!?
Falta aqui uma enorme razão!...[
Uma razão para agitar essas
pardas águas,
esse mofo!
 
Pois, claro! Pois, claro! Sou um idiota.
Mas nunca recusei ser idiota ou louco.
É o maior dos elogios!
O que escrevo só diz respeito
aos recusados, aflitos, esquecidos.
Se lerem este poema no metro,
farão rir dois ou três.

está o meu leitor:
o inadaptado,
o vírus do sistema, da máquina
que procura uniformizar:
gostar de A e B e só de A e B:
dizer poesia apenas na forma grelhada;
forçar sempre o sorriso;
nunca dizer uma caralhada;
nunca dizer: vai-te foder!
Exagero?
Pois bem, nada pode ser exagerado, nada
pode ser dito a gritar, nunca
a cólera,
a fúria,
a vontade e a força que nos faz
ser idiotas, imperfeitos, incompletos,
Imbecis.
 
No dia em que fecharmos a poesia
numa grelha,
nesse dia,
já não seremos humanos!
A máquina, a boa vontade da máquina, já
nos terá sugado as
entranhas e tudo será dito
como querem que seja dito:
«Sim, senhor professor, tens
toda a razão,
a poesia só
existe
pela
e
na
Rima.»
 
Mas haverá sempre falha no Sistema: EU!
 
Vai-te foder, Senhor professor!
Vai-te foder!

2.10.2018

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Charles Bukowski (1920-1994)

Abrir mundos

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Espelho.
Espectro.

Duas palavras abrem vários mundos. Cada um de nós, leitores, poderia relacionar “espelho” e “espectro” de diferentes maneiras. Ao ler este breve poema de Luis Marcelino Gómez, eu vejo um homem cansado, olheirento, talvez meio despido, contemplando um espelho. Gasto por tremendos trabalhos, esse corpo assoma, fura o escuro, arrasta consigo muitas carapaças. Vejo, no fundo, um espectro, uma criatura que perdeu parte da energia ou do idealismo, que viveu sonhos, tantos deles convertidos em desilusões, e que agora está ali, resistindo a uma furiosa vontade de deixar de ser quem é. Espectro, coisa pesada, remete-me para uma certa ideia de regresso ao passado, de reviver a juventude, de voltar a ser aquele que tudo fazia sem medo. O jovem que não era fantasma. Uma sombra de nós mesmos, eis o que acabamos por ser a certa altura. Uma vida enrugada cobrindo um montão de existências antigas. Estas poderiam ser chaves para uma aula de escrita criativa.

Espectro.
Espelho.

A partir daqui, pedimos aos estudantes que inventem um mundo. Poesia, arte. Muito passa pelo que não está escrito.

Regurgitações Revisitadas 

O verão arrefeceu, a máquina parou, os marmelos, 

Já devem estar maduros, não tardam os vidros embaciados, 

Na cozinha, com a lareira a prometer incêndios caseiros, 

Como no verão do rei leão e os mexilhões do rio, 

Levados quase à extinção, porque a família toda, 

Agora o rio uma amostra de quando se vivia de verdade, 

Como revisitar um álbum de fotografias molhado, 

Umas quantas horas para fingir que ainda se é feliz, 

Uma mão cheia de mexilhões, quanto muito, 

Uma loirinha finlandesa a tomar conta de um vazio 

Demasiado grande para quem quer que seja, 

O verão frio, as andorinhas umas putas que se põem 

A milhas logo que as manhãs não lhe nascem douradas, 

A máquina aqui, a máquina tão longe, espera, 

Não esperes beber o copo que lançaste na terra, 

Nem reacendas o fósforo numa noite apagada, 

Nos primos mais jovens, já a última inocência, 

Viver é uma extinção imensa e singular, 

Na varanda a estas horas só cresce o pó frio das folhas mortas, 

Que esperas de janela aberta quando o Outono regressa, 

Além do cinzento que te pinta os ossos da cor da alma, 

E os meus dentes não trincarão a marmelada deste ano, 

Nem sei se as uvas estão boas, os pés lembram-se, 

O ano acaba logo no fim de Agosto, quando não há mosto 

No ar de Setembro, a aguardente mora ao lado do sono da infância, 

Não há verso que sirva, quando as fotos se descolam do álbum. 

 

18.09.2018 

 

Turku

O TOURO ALEGRE NA ARENA DE CÉSAR

“em pago de sofrer tantas durezas
provai, senhora, em mim vossas cruezas”

                                         Camões

 

Todos em surdina avistavam o Touro, o esquecido,
O destemido Touro, exibindo o velho dorso na pele
Usada da escrita. Alegremente espera o espeto!
Rasgo a pele até ao fio mínimo, onde a vã e seca -
A mioleira - se esgota lentamente. A liberdade
Do outro, daquele que não tem voz, pede, não
A gaivota parva que esvoaça, mas a raiva dos que
Sabem amar todo e qualquer corpo Vivo.

Manet - “O Toureiro morto”, C. 1864-65.

16.11.18