Todos esses ténues irmãos

Todos esses ténues irmãos procuram

uma fina brecha no espaço do tempo   e eu digo

o tempo não é como o xaile que vias pousado

ou se fores como eu jamais viste   pousado

na cadeira antiga   e repara   disse pousado

porque pausado seria ainda uma expressão

que nos traria de volta   concentra-te   concentra-te

agora nessa cadeira   e imagina-a sólida

à imagem do teu irmão sentado   como quem

assenta ladrilho   ou assentou   num dia solene

em que se anunciava qualquer compromisso

à fachada de uma coisa qualquer   imagina

essa mesma cadeira coleccionada pelo teu sorriso

isto é   pela ténue brecha que todos os irmãos

nas vésperas de serem condenados sabem abrir

ao céu ou à imortalidade da renúncia   e sabes

nem todos nós conservamos a morte de joelhos

prostrados ou indolentes à espera que se faça dia

desenhando na curva desse xaile a que certa vez

deste o rosto da tua avó   a adivinhação

dos pássaros   nem todos nós deixaram de crer

que quando os antigos falavam do seu voo

isto é   das aves que voam   estavam a falar

dos homens   pouca gente sabe   que atrás

de cada suspensão eras tu que murmuravas   a asa

do tamanho de toda a mais pequena partícula

poucos sabem que não eram os antigos que desenhavam

templos no céu eram os pássaros já que previam

que o tempo se corrompia e desafinava

em pequenos ecos de véspera   ou melhor dito

em laudas tais que os benditos   os certos

eram os que escolhiam passar   como tu

como tua aliás   irmã   ténue irmã

que de alguma forma aprendeste a poluir

com a pontualidade que só os grandes deuses

têm    a pontualidade dessa cadeira onde

dizem   certo tempo se escondiam os ombros

da mãe da tua mãe   onde hoje uma geração

que se esqueceu de se agasalhar se lembra ainda

de uma fina ou quase ténue ruptura   alguns diriam

doce   em que nos conhecemos   isto é

uma ruptura qualquer em que sulcámos

o Elevador do Lavra e nos encostámos

ao assento da madeira   e dentro do amarelo

como só os eléctricos sabem ser   soam

todas as vésperas   ou todos os hinos

que reconhecemos apesar da matéria

tu sabes a que me refiro

àquela brecha   àquela sombra   em que constatámos

para grande incredulidade dos pássaros

e de outras formas de expressão náutica

que todas as vozes que jamais soaram

têm a definição de uma cadeira

ou do colo que a tua avó por vezes

te oferecia   outras te recusava.

haverá cantoria hoje

haverá cantoria hoje
a delegação Sul Coreana
gastou milhares de libras
num sistema de karaoke
de alta cilindrada
todos os reservatórios de lágrimas
se irão esvaziar
quando o grande homem cantar
Always
dos Bon Jovi
aquilo não é carne para o meu dente
disse a Lena
e depois apaixonou-se
por um bêbado que lhe batia
e se vestia de pedinte
quando ia ao médico
para renovar
o atestado de loucura
a sua voz era impecável
quando cantava o fado

domado o intento há ainda
que resolver a questão do canto
a perversa natureza
que nos impele

Tratoria da Ubaldo

depois de subirmos as escadas da torre
alcançarmos a árvore no cimo
atravessámos a piazza vazia
e parámos para comer e descansar
na Tratoria da Ubaldo
onde um pirata cortês
nos conduziu à nossa mesa
e trouxe
uma garrafa
de Vino di Cazzo

di dove sei?
o louco local
di dove sei?
o seu corpo septuagenário
tremia de alegria
Portogallo!
Portogallo!
e cantou para nós
incitando-nos
a que acompanhássemos com palmas
a dança que
em nossa honra
fazia

Sobre o terramoto, à distância

Marija Dejanović
Tradução de Tatiana Faia
de Dobrota razdvaja dan i noć
(A Gentileza Separa a Noite do dia)
a partir da tradução inglesa de Vesna Maric

Metade do edifício colapsou
Aquelas paredes que deram asma ao meu irmão 

A outra metade foi de onde
há vinte anos
um vizinho atirou o cão
e um par de anos mais tarde, a si próprio também 

Nos corredores
brinquei com Barbies
e cuspi aguarelas
para pintar a porta do quintal
quando ficava sozinha em casa

Ainda acredito
que não merecíamos os castigos
que se abateram sobre nós

Nas entranhas sinto o pássaro que voa sobre
as casas arruinadas
as traves fendidas
o pranto das bicicletas e as costas curvadas das pessoas

Atravessam em pijamas e chinelos
um mal estar que partilham
como que passando por águas profundas

Lendo
um amigo de infância escrever
que alguém devia finalmente deitar abaixo aquele velho
edifício
porque os seus tijolos caem no telhado da sua casa
sempre que a terra estremece
alguma coisa dentro de mim cai como um tijolo
e fica em silêncio

O mundo dentro

Ilustração de Yiannis Kotinopoulos

Tradução de Tatiana Faia

Ontem foi o dia
Em que me esqueci de regar as flores e deixei
Que a roupa suja imaginasse
Uma nova cor na minha fonte. 

Não posso dizer ao certo se foi
No princípio ou no fim da semana
Embora me tenham ensinado a diferença
Entre os dias e a importância
De te ligares cuidadosamente ao presente
Com fios impalpáveis. Mas deixei
O pão no forno e ainda não havia
Ninguém que eu conhecesse nas urgências
Não me bateram de súbito à porta, só ramos
Da árvore no quintal intrometendo-se pela janela
E um cheiro a queimado comestível para ninguém. 

Havia um mundo dentro da minha casa como um espinho
Cravado na pata da raposa
Ganindo, coçando-se, chorando, arranhando, e por
Causa do mundo esqueci-me de mim
E lambi o mundo na minha carne
Duramente com uma língua dura tentando
Não deixar o seu fluxo de xarope exalar-se.


The world within

Yesterday was the day
I forgot to water the pots and I let
The laundry clothes imagine
A new color in my fountain.

I can’t say for sure if it was
The beginning or the ending of the week
Though I have been taught the difference
Between days and how important it is
To attach yourself carefully to the present
With impalpable threads. But I left
The bread in the oven and still there was
No one I knew in the emergency room
No sudden knocks on my door, only branches
From the backyard tree intruding through the window
And a burnt smell nobody could eat.

There was a world inside my house like a thorn
That is stuck in the paw of the fox
Whining, itching, crying, scratching, and for
The world’s sake I forgot myself
And I licked the world in my flesh
Hard with a hard tongue trying
Never to let its syrupy flow exude.