Visões de troia

i

Naquele início de tarde ao cruzar
de barco a foz do sado não vimos
frente a troia o dorso dos golfinhos
Pensar que sempre neste e noutros
mares habitaram cadáveres de pessoas
e de cetáceos presos em cordames 

Rumo à praia há um cheiro a alfazema
a verão em maio a ideias liquefeitas
e a deuses visitando os corpos 

Com que artifícios os operários construíram
esta passadeira e com que restos de madeira?
De barcos lestos desembarcam na praia
homens musculados com armas contra o sol 

É longo o cerco dos dias o mês
encosta-se a uma nova estação 

ii

Nas metáforas de Homero não é certo
quem morre se a natureza se as pessoas
esquartejadas do verso para fora  

Arde rápido no olhar o mato seco
que empilha em dunas as areias
o fogo é extenso a vida sem duração
o dia inclina a cabeça à noite irrevogável 

À nossa frente das flores antes fechadas
saem borboletas e abelhas rumo à colmeia
na nascente púrpura do ocaso 

em troia paz e morte
coincidem passo a passo

CV 

Sou a antítese segura, o desejo secreto dos recorrentes, 

A espuma da raiva da manhã, a geada no canto da boca, 

O mistério da fé e do ridículo, o colo estéril da gula, 

O sonho dos mortos, o caudal esquecido da extinção,  

Contudo nas mãos vazias, mundos de ilusões, 

O cansaço emprestado dos avós, a pegada do copo vazio, 

Tu que julgas as graças dos anjos, condenas o inevitável sono, 

Que esperas das juntas pregas de visco e vício, 

Deixa-te cair em tentação, como num sono morno, 

Não esperes mais, o amanhecer será sempre mais uma volta. 

Turku 

28.01.2024 

Caminhar

 

Caminhar numa ilusão de pálpebras,

Inertes a estremecimentos de cada passo

Batido no silêncio acolhedor do Inverno,

Tudo parece ter a distância do último dióspiro

Na árvore, a importância do arrependimento,

Os dentes escondem sorrisos tenebrosos

E sonhos que inquietam até a coagulação

Do sangue mais viscoso, os corvos esperam

O passar das eras, o esquecimento

De todas as civilizações, estar aqui,

Nunca permanentemente, permeável

A todas as tentações, punhos fechados

Nuns bolsos solitários, a caminho apenas,

Esperando o regresso como a certeza

De todas as primaveras, esmagar segundos,

Como quem pisa cristais de neve

Num sufoco que ninguém lembrará,

Seremos apenas a ausência da água,

Uma sede que terminou, um olhar

Que se encontrará apenas nas palavras,

Até que a última seja esquecida.

 

13/01/2024

Turku

 

Conto de Natal

quando a sereia estava prestes
a iniciar o seu canto
Ulisses disse
                        espera
não te enfadam
as águas geladas?
ofereço-te uma cama quente
peixe com fartura
a oportunidade
de ver o mundo
e a sereia hesitou

na sua gaiola
ela cantava um canto
cada vez mais desesperado
Ulisses exigia aos ouvisses
que pagassem adiantado
antes de serem
levados à loucura
e com cera nos ouvidos
contava o lucro

mas animais selvagens
não duram em cativeiro
a sereia
deixou de comer
o seu canto
cada vez mais estridente
fazia tremer
os madeiros do lenho
enchia de medo
o coração dos homens
e o líder
cedeu por fim
aos princípios
de boa liderança
e teve a coragem
de dar a ordem
para que outros
tratassem do assunto

enlutados os navegadores
prosseguiram a sua viagem
aportaram no Dubai
e lá passaram o Natal
num hotel de cinco estrelas
dissipando o dinheiro
que tinham feito com a sereia
em excessos
de toda a espécie

Fim