Platão, Fílon, 215b-216a

A escola de Atenas, Rafael ca. 1509 (Platão, pormenor)

A escola de Atenas, Rafael ca. 1509 (Platão, pormenor)

FÍLON: Sócrates, porque dizes ser necessário pensar sobre a morte? Será isto dito de uma forma artística (technikôs), ou será algo que se prende, pelo contrário, com a própria natureza do que se vê?

SÓCRATES: És tu quem o pensas?

FÍLON: Sim, Mestre, procuro saber por que razão é necessário não pensar demasiado se és tu próprio quem morres no momento da tua morte.

SÓCRATES: Diz-me então, Fílon, receias a morte?

FÍLON: Naturalmente, ó Sócrates! Temo-a porque Hades habita em mim e temo igualmente que ele receie a minha morte.

SÓCRATES: Mas, Fílon, se o deus que preside ao submundo ainda assim tem tempo de te contemplar, que recearás senão a eternidade, amigo?

FÍLON: Estou certo de que a eternidade não me procura, Mestre, estou bastante convicto disso.  Mas se, pelo contrário, presidisse sobre mim a mortalidade, seria apenas mais um cadáver. Assim como estou, vivo, nada tenho a dizer para além das palavras deste incenso que consagro aos deuses da minha piedade (eusebeia).

SÓCRATES: Diz-me, pois: sabes com certeza que o mundo tem terra, água, sol, estrelas fixas, estrelas errantes, ventos, marés?...

FÍLON: Com certeza, ó Sócrates!

SÓCRATES: Então porque não os devoras enquanto estás vivo?...

FÍLON: Como assim? Que falas?

SÓCRATES: Recearás por ventura a sua extensão?...

FÍLON: Se por engolir te referes a uma passagem pelo corpo, estou certo de que tens razão.

SÓCRATES: Sim, mas tens de admitir que haverá uma outra forma de recear a morte.

FÍLON: Não vejo outra senão a de morrer.

SÓCRATES: Mas, Fílon, diz-me: como podes fugir a tal pensamento? Se pudesses fugir, que caminho encetarias?

FÍLON: Mestre, receio que hoje já tudo tenha sido dito.

SÓCRATES: Não te entendo.

FÍLON: Hoje já tudo foi dito.

SÓCRATES: Por quem? Não conheço essas tuas anacruses.

FÍLON: Será talvez porque o tempo se suspende e estamos aqui por profusão da humanidade, isto é, do homem.

SÓCRATES: Amigo, confessa-me, tens tomado as ervas que o médico te prescreveu?

FÍLON: Não posso dizer que sim.

SÓCRATES: Entendo-te.

FÍLON: Posso não querer tomá-las?

SÓCRATES: Talvez seja possível. Mas ouve antes estas palavras; conhecerás com certeza as histórias que se contam acerca de Ariadne e Teseu?...

FÍLON: Como não, ó Sócrates?

SÓCRATES: Pois bem. Na noite, dizem, em que Teseu pensava sobre como libertar aquela que por ele era amada, diz-se que os deuses em sonhos lhe sugeriram que Zeus, descansando a lua, tinha dado ao jovem o poder de transformar os homens em setas. Ao despertar do sono, o herói, desconhecendo o destino que Hipólito para ele tinha preparado, sabendo que a princesa de Creta mais cedo ou mais tarde chegaria à conclusão de que tudo para ela estava perdido, fez-se labirinto. No momento em que haveria de toda a terra se transformar em arco, o Olímpico fez cair a chuva sobre as lágrimas do herói, e por haver demasiada sombra na água das coisas (tôn rêmatôn) os rios fluíram demasiado. Seria também demasiado que este mito fosse algo digno da dignidade e da majestade dos deuses, mas é um facto digno de admiração que as estrelas, nesse dia, suspirassem por ver Teseu preso para sempre! Diz-me, pois, Fílon, que acharás melhor: viver nessa surpresa que suspira ou imaginar que tu, e nenhum outro, estará no momento da tua própria morte?

FÍLON: Com certeza imagino, Sócrates, que a primeira opção é a correcta.

SÓCRATES: E se fosse a segunda escolha do mito que te mostrasse o quanto és digno da pena dos deuses?

FÍLON: Claramente responderia que queria também eu um pouco dessa divindade. E que se os deuses sentem pena é talvez porque também têm uma existência dentro dos homens.

SÓCRATES: Confessas, portanto, que tens medo não de morrer, mas de que sejas tu no momento da tua própria morte?...

FÍLON: Sim, é verdadeiro isso que afirmas.

SÓCRATES: E se pudesses ser Teseu, que farias?

FÍLON: Faria com que Ariadna fosse livre.

SÓCRATES: Livre de uma prisão criada pelo seu próprio enredo?

FÍLON: Decerto.

SÓCRATES: E se fosse Teseu aquele que está preso na sua própria fábula (mythos)?

FÍLON: Seria digno de pena, ó Sócrates.

SÓCRATES: Quanta?

FÍLON: Toda a miséria do mundo.

SÓCRATES: E se, por absurdo, fosse essa história (logos) inversa?

FÍLON: Como assim?

SÓCRATES: Se fosse a amante que tentasse libertar o amado?

FÍLON: Nada mudaria, penso eu.

SÓCRATES: E tens razão. Nada mudaria.

(...)

A utopia dos livros 

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Por vezes, brincando com uma ideia imaginária do homem que poderia ter sido, exteriorizo com a esposa, coitada, delírios de felicidade, sonhos suburbanos, de quem medrou na pobreza, como passar os dias de robe e pantufas numa casa com piscina, a soprar fumo de charuto, a ler Proust, a combinar as férias em Punta Cana. Estes são escapes mentais, maneiras de me idealizar noutra vida, talvez noutro corpo. Não sendo Tony Soprano, nem fumando charuto, é-me mais conveniente uma utopia proposta por Kafka, quando anota que a melhor forma de vida consiste em encerrar-se numa cova funda com um candeeiro e o material necessário para escrever. Escrever em paz, longe de vozes, livre do trabalho, eis uma possível utopia de quem escreve - a utopia de um dia vir a ter as condições perfeitas para criar (no escuro, no silêncio, na torre de Montaigne) a obra magistral. Outro sonho de quem se dedica aos livros é ler ininterruptamente, ler sem paragens, ler como se a leitura fosse acto inseparável da escrita, como se substituísse a comida e a bebida e pagasse as contas. Ler de maneira a que a leitura transforme este mundo de cansaço num mundo de Borges, no qual tudo, inclusive um dicionário, uma namorada, possa ser lido como ficção. Ler como se uma mulher, a nossa, pudesse ser parte da leitura. Kafka, explica-nos Ricardo Piglia em O Último Leitor, constrói uma leitora atada aos seus manuscritos, uma figura sentimental que une escrita e vida, em suma, uma mulher perfeita, uma leitora fiel, que vive para ler e copiar os manuscritos do homem que escreve (aliás, Felice Bauer, essa criatura transformada numa leitora de cartas e manuscritos, desperta a atenção de Kafka por passar a noite a ler, por ler até tarde na cama). 

7 poemas de SAL ~ SOL ; SOLO

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PRELÚDIO

 

Esmalte vermelho
Um pouco acinzentado

Cinza sobre a mesa pequena
Na varanda, conchas
Cheias da cinza, lembremo-nos,
Humano, este és tu também
Matéria leve, cinzas voando
Carregadas pelo vento
Que sobe
Pelo rio

Estou a sentir-me
Como na borda de um navio
Eu, inclinada sobre
A delicada estrutura de ferro

Olá liberdade!
Olá pássaros!
Olá perigo!


As bocas vermelhas
Dos meus dedos
Feitos pelo Deus-ferreiro
Dedos selados,
Cumprimentando com cortesia
Enquanto incluem
Penugens cinzentas, incenso
Contam-me sobre o calor
De fogo, vulcões. Olá,

Liberdade! Olá, phoenix!
Olá, vida!


RE:FLEXÃO

 

Eu peço-te
Que me vires

Como o vento dobra
As ondas, peço-te

Que me consertes
Para ter a força, concentrada
Para não estar espalhada por aí

Somente abstraída da fonte

Das minhas confusões
Pois eu não sou (do) mar
Mas nele me reconheço
Como seja um espelho


 

Se eu apertar
Um nó
Na minha tristeza
Pode ele lembrar-se
Lembrar-me
Da minha felicidade


NA BOCA

 

A eternidade
Na boca
Uma língua
Cheia de palavras
Cheia de silêncio
Sem fim
As palavras
Na boca
A eternidade
Elas lapidam
A obscuridade
Dentro dos lábios
Lapidam-na
Clara como uma
Pedra preciosa
Transformam-na
Numa ponta aguda
Será a caneta que
Eu vou usar para
Escrever sobre estas,
Aquelas coisas que
Ainda não sei


CAMINHO

 

Caminho
Eu estou a caminhar
Não caminho
Nas ruas, nos campos
Estou a caminhar num
Mundo sem corpo
Tudo é som, tudo é sonho
Eu sou um corpo, tenho-o
Tenho um que os meus
Pensamentos podem usar
Para caminhar e
Por isso eu caminho
Eu estou a caminhar
Bastante
Aqui, lá


TRAÇO
 

Em cima das tuas bochechas
Em baixo dos teus olhos castanhos
À esquerda, à direita
A pele ondea-se, tímida
Que rugas delicadinhas
Como se se sentassem lá
Borboletas, voadas, já


PASSAR (O TEMPO)
 

Para aterrar
Ele escreveu
Eu precisaria
De ver o destino
Ainda mais claramente

Apesar de tudo
Ainda estamos novos
Eu respondi

Os contornos
Esclarecerão
Quando os olhos
Desvanecerão, perderão
A linha


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Adam Zagajewski, "Tenta louvar o mundo mutilado"

Tradução de João Ferrão e Anna Kuśmierczyk

 

Tenta louvar o mundo mutilado.
Recorda os longos dias de Junho
e os morangos silvestres, as gotas de vinho rosé.
As urtigas que cobrem metodicamente
as herdades abandonadas dos exilados.
Tens de louvar o mundo mutilado.
Observaste os iates elegantes e os navios;
um tinha uma longa viagem pela frente,
ao outro esperava-o apenas o nada salgado.
Viste os refugiados que caminhavam para lugar nenhum,
ouviste os carrascos que cantavam com alegria.
Deves louvar o mundo mutilado.
Recorda os momentos em que estiveram juntos
no quarto branco, as cortinas movendo-se.
Volta em pensamento ao concerto, quando a música eclodiu.
No Outono colheste bolotas no parque
e as folhas rodopiavam sobre as cicatrizes da terra.
Louva o mundo mutilado
e a pena cinzenta, perdida pelo tordo,
e a luz delicada, que erra e desaparece
regressa.


Sobre o autor

Adam Zagajewski (1945) é um poeta, ensaísta e tradutor polaco. Nasceu em Lviv, actual Ucrânia, tendo mais tarde estudado em Gliwice e Cracóvia. Viveu em França e foi professor nos EUA e na Polónia, trabalhando actualmente na Universidade de Chicago, onde lecciona um curso sobre Czesław Miłosz. A sua poesia, marcada por imagens límpidas e um tom discursivo e íntimo, partilha de muitas das obsessões da restante literatura polaca moderna (o holocausto, uma relação peculiar com o Cristianismo, a cultura europeia), mas também tópicos pessoais (a relação com os pais, a memória, a música). Está traduzido em várias línguas e venceu, entre outros prémios, o Neustadt em 2004 e o Princesa das Asturias em 2017.

Tentativa e erro

David, pormenor do rosto

David, pormenor do rosto

A primeira vez que tentei estudar italiano foi em Lisboa, onde tive uma professora de Nápoles acabada de chegar de Buenos Aires, onde tinha vivido vários anos. Ela não parecia muito feliz de regressar à Europa, não falava uma palavra de português, não nos deixava tirar uma única nota por escrito (algo que a mim me enervava), e o meu colega de carteira, ocasionalmente, era o lendário cantor José Mário Branco, que uma vez a meio de um teste, não sei bem como, vendo-me derrapar no acto de soletrar Michelangelo me corrigiu amavelmente. Não tendo isto sido o início de uma bela amizade, tenho, no entanto, com José Mário Branco a dívida anónima de nunca mais ter incorrido no pecadilho de soletrar erradamente o nome de um dos maiores génios da Renascença. Michelangelo está sepultado em Santa Croce em Florença, ao lado de uma série de outros génios do Renascimento, tantos que parece um pouco banal dar com o seu túmulo ali. Uma pessoa erra de um lado para o outro no amplo espaço daquela Basílica no meio dos turistas, até acabar cá fora, num túnel subterrâneo, onde do chão ao tecto repousam várias lápides datadas do romantismo, de gente que morreu jovem e de febre, de tuberculose, em acidentes pelo menos tão acidentais e aleatórios quanto acidentalmente se vive. Há uma grande ausência no centro de Santa Croce, que na verdade preenche toda a Florença. Numa posição no centro da Basílica está o cenotáfio de Dante, algures entre Leonardo da Vinci e Michelangelo. Fora das suas rotinas, os vivos vêm aqui apreciar os mortos, de máquinas fotográficas em punho, os seus passos ecoando pelo mármore.

Como Dante sabia, às vezes no meio do caminho da nossa vida podemos dar por nós absolutamente surpresos. Então, do nada, ocorre-nos subitamente a suprema graciosidade de alguns dos esboços menores que antes de dar com o David em toda a sua glória, uns quarteirões mais abaixo na galeria de destaque da Academia, se pode ver nos corredores desse museu. São uma série de esboços de figuras que se contorcem e se dissipam incompletas na pedra. Michelangelo teimosamente a lutar com a forma, tentativa e erro em loop. Quanto é preciso errar para chegar à forma certa.

Atlas de Michelangelo, um dos estudos que circundam a estátua de David na Academia

Atlas de Michelangelo, um dos estudos que circundam a estátua de David na Academia

Em An Art Lover’s Guide to Florence, Judith Testa dedicou algumas linhas a estas estátuas menores:

Those who go to see David today must first make their way through a museum of mediocre paintings and then down a long gallery lined with unfinished sculptures by Michelangelo, remnants of several of the artists ill-fated projects. Those shadowy figures seem to be struggling to break free from the blocks of marble that imprison them. Then, at the end of the corridor, the David looms on its pedestal, as fully realized and free from its stone block as any statue ever made... (p.242)