A Celeste do sétimo ano

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Não tem dentes na boca, a galdéria, nem um, apresenta a cremalheira partida, uma boquinha de bebé com as gengivas rosáceas. Os primeiros dentes tombaram à força dos estouros do Zé, o chulo. Os outros apodreceram de apodrecimento natural, e também porque a droga, quando mamada em abundância, é material que perdoa pouco. Coitada, ofertando felácio na esquina, pobre, logo a Celeste que era tão boa em termos de feições e beijocava de uma maneira que...ora bem, para descrever seus beijos teria de consultar enciclopédia e explicar o fenómeno das estrelas cadentes e da invasão de Marte por Arnold Schwarzenegger naquele esquecido filme de domingo. A língua de Celeste, bicho húmido, chupa-chupa, pirolito, metia ao barulho matemática, pintura, ciência, química e aromas. Celeste, desfigurada. E eu que a pedi em casamento no sétimo ano, na aula de inglês, perante o mumificado Luís Pedro, a melhor fotografia viva de pôr na campa que conheci. Luís Pedro, cábulas de plantão, empenhado em fazer voar a ponta do giz até à nuca do professor. A propósito de professor, isto de lecionar em Massamá esfalfa um santo. Ontem, de alma mirrada, buscava conforto nos beiços de uma menina de rua, e quem encontro, Celeste, a mesma do sétimo ano, agora na pocilga. Gorda, quiçá, mãe de três potros, casada com um devorador de feijoadas ou pedreiro ou jardineiro ou calceteiro ou canalizador, imaginava-a a fazer qualquer coisa menos associada a um gandulo agarrado à heroína, acometido por recorrentes impulsos de arrancar dentes ao soco. Celeste, debruçada sobre o carro, cuspia que o serviço me custaria dez biscas - pagas cinco no imediato, dez no fim, com gorjeta e taxa de juro, que isto é como nos bancos, pagas em cómodas modalidades, mas a dobrar. De modos que a Celeste, desdentada, me desabotoou as calças de ganga da Levi’s que a minha mãe comprou nos saldos. E não tardou a matar-me a saudade daquela vivacidade que só ela tem. Retomei o amor, pedi-a em casamento, ela aceitou, amanhã compraremos as anilhas de ouro e já planeamos fugir para o Brasil, uma vez que de má reputação estamos cheios até ao pescoço.

- 50 Andorinhas -

   

           PRIMEIRAS 10 ANDORINHAS

                                I

Amar exige esquecer-me, exige

o mais profundo desejo de dissolução.

                               II

Não esqueças a água, o poder da água, o

poder do esquecimento. A cura.

                              III

Louva, entre o fogo dos dias, Deus, a pos-

sibilidade do mundo longe do olhar.

                              IV

Pondera, na escura solidão da dor, os

“nãos” a dizer àquele que amas.

                              V

Deseja, deseja sempre. Deseja sobretudo

nunca desejar o desejo. O corpo nu.

                              VI

Lento são os teus pensamentos em dias de

nevoeiro. Sonha, procura aquilo que és!

                              VII

O corpo arrastado da árvore que morreu

é hoje esse sorriso entre mãos.

                              VIII

O som dos dias misturados em suor

é a tentativa de ir além do corpo.

                              IX

Sôfrego homem de pele vermelha não

desistas da luta inútil. A vida.

                              X

Pedra, calçada ou virgem abandonada na

montanha, pede a liquidez do suor.

 

            MAIS 24 ANDORINHAS

                              XI

Espalha o teu cabelo curto nas margens da

cadeira onde sentaram os reis e recolhe.

                             XII

Secura do Ser, da vida, dos dentes secos,

esponjas entre mãos. As tuas doces mãos.

                           XIII

Amor, se eu pudesse dizer amor. Esquece tudo

aquilo que sonhaste. Voa além da dor.

                            XIV

A palavra secando em estendais divinos,

esticando o seu corpo até à incompreensão.

                              XV

Homem de sonho com palavras de sal espera

a dor lentamente. Espera. Recolhe-a. Sim.

                             XVI

O poderoso corpo em esforço seria talvez a

solitária vontade dos homens. Todos e tu.

                            XVII

Não mais provoques a dor, não mais

esperes a poderosíssima voz do outro.

                           XVIII

Fechada, a concha, não reconhece a dor.

O mar é toda uma dimensão imaginada.

                           XIX

Sossega, mente de espinhosa visão, sê

a folha branca desenhada. Condensada.

                          XX

Pelos do mar, curvas do desejo. Vê

a escuridão do teu interior em ruína.

                          XXI

 Colapso de tempo, no pequeno corpo mole,

dá-lhe desassossego do lugar. Dispersa pena.

                        XXII

Peruca de cabelo branco, cabelo branco de

peruca. Branco fio de peruca. Brancura seca.

                       XXIII

No terceiro dia o sol não tinha forças,

o grande sol não tinhas. Ó nasceu.

                        XXIV

Ponderado senhor de gravata vermelha

quem sois sobre o frio da montanha?

                         XXV

Entre o poder da calçada, a teimosa areia

procura dizer a verdade da vida.

                            XXVI

Unha pobre, de quem é o dente que

te tritura? Seca, pintada, afiada.

                           XXVII

Pena de corvo lançada ao vento da morte,

diz-me onde encontrar a perdida nuvem.

                         XXVIII

A coluna em inclinação deseja toda a

negada verticalidade. A moleza do corpo.

                        XXIX

Espelhados são os esforços dos dados,

das mãos, dos sins e dos nãos . Nega.

                        XXX

De encontro a encontro aperta o amor

que te ficou. Encaixota-o ou afoga-o.

                       XXXI

Lenta é a palavra esticada, um corpo em

dimensão de horizontalidade infinita.

                      XXXII

O rio, de onde saíste, era tudo aquilo de que

precisavam os mil peixes sobre a mesa.

                       XXXIII

Do lado de cá, tudo pode ser possível, se

fizermos de um ponto a explosão da tua alma.

                      XXXIV

Não, dizes-me Não. E eu não posso

dizer-te. A seta reenviada marca o sim.

 

               MAIS 13 ANDORINHAS

                      XXXV

Espera lentamente que a desilusão dessa-

pareça para nela renasceres, tentares.

                        XXXVI

Longo é a palavra do desespero, a única que

conhece a verdade que a razão esqueceu.

                         XXXVII

Sonha. Dá ao corpo o descanso. Recolhe sobre

ti a poderosa vontade de Deus. Acende o silencio.

                         XXXVIII

Não repintar. Repete sempre o sim, mes-

mo que todo o teu corpo sangre.

                          XXXIX

As folhas das árvores resistem ao cair e

eu, aqui neste jardim, ainda estou vazio.

                           XXXX

Nau de rochosos tijolos voa sobre os

homens e mulheres que exigem o Sim.

                     XXXXI

Esmaga a dúvida, a dor, o peso do medo,

vê sobre a ruína a possibilidade nata.

                        XXXXII

Larga o peso, esconde o rosto. Vê sob

todo o manto a desejada dissolução.

                       XXXXIII

Narciso sonhou sozinho no meio do

jardim. Engolido pelo ego nasceu.

                       XXXXIV

Carne grelhada no cume, sangra a dor

da inesperada melancolia. Dorida e cega.

                       XXXXV

Senhor, dá-lhe a fria azeitona no cérebro.

Dá-lhe a cinzenta e fria cebola dos dias.

                       XXXXVI

Da ordem escolhe o sabedor a linha reta

para o seu caminho, o desgraçado erra.

                        XXXXXVII

Se tudo o tempo engole, que me coma,

lentamente, até ao esquecimento total.

 

          ÚLTIMAS 3 ANDORINHAS

                        XXXXVIII

Seca, a memória, cai sobre o corpo e rompe

a última e frágil esperança. Regressas viva.

                        XXXXIX

O pavão do jardim não mais cantou a voz

do poeta. Morreu no relâmpago do gemido.

                        XXXXX

 E no esquecimento total reconheceremos

a dimensão da dor ambulante. Una.

31.05.18

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Vesúvio ou A Poesia

Viagem em Itália de Rossellini (1954). Katherine (Ingrid Bergman) e Alexander (George Sanders) são o casal Joyce, ingleses de visita a Itália (uma vez mais, como em Um Quarto com Vista de Forster). Dão-nos uma conversa edificante sobre poesia ou talvez, lá no fundo, sobre outras matérias: a natureza do gelo, o ciúme, a saudade, a paixão, ou todas essas coisas (e as outras) ao mesmo tempo, como é próprio, aliás, da poesia. Ela existe porque os diálogos avançam precisamente assim, entre surdos que insistem em ouvir-se.

Mas há um terceiro ponto de vista, o do responsável que lhes mostrou a casa: 

«Quero que vejam a varanda. Aquele é o Vesúvio. Desde a erupção de 1944 que está inactivo. Mas a temperatura começa a subir. Atrás daquela primeira montanha fica Pompeia.»

Não o sabe, mas é ele quem melhor nos apresenta a poesia: vistas para a quietude, iminentes erupções. Fóssil e fogo.

O filósofo enquanto detective; Processo do acaso da felicidade; A Esperança

O filósofo enquanto detective

 Fechou o caderno mantendo o indicador a cumprir a tarefa de marcador e, durante alguns segundos, repetiu o texto que acabara de ler como uma criança cantando uma ladaínha: “o filósofo deveria ser como um detective. a ideia é o crime perpetrado ou em vias de se realizar – embora neste caso ele seja o assassino. As duas vias complementam-se; o melhor seria ser um detective que apagou da sua memória o crime que executou e segue em busca das suas próprias pistas até que se confronta com o trauma, a «verdade», como em Memento.

Uma ideia é um conjunto de elementos díspares dispersos, o filósofo agrega-os, tece a trama lógica – causa e efeito são produzidas a posteriori e a fortiori. Nenhum criminoso quer ser apanhado ou parado, as pistas – ideias, argumentos, conceitos – são as marcas inadvertidamente largadas.

Para o assassino ou o criminoso, o processo é ligeiramente diferente. Ele joga com as probabilidades, planeia os movimentos, experimenta os passos como um jogador de xadrez, vai tentando, uma e outra vez, até que o plano não aparenta falhas e eis que a ideia se apresenta e tu cais no seu ardil. Só os assassinos são criadores. Contemple-se nos grandes pensadores, estes são os assassinos; os seus epígonos e seguidores, ou críticos não-criadores, são os detectives.

Por vezes um desses detectives comete um crime. Qual dos dois queres ser, o criminoso ou o detective?”


 

Processo do acaso da felicidade

 O seu desejo era simples. Capturar, por dia, um acaso e, nessa captura parcial, reconhecer a configuração possível e actual do Acaso, tão imperceptível no hábito.

Acordava e anotava a primeira palavra que lhe ocorresse. Isso, todos os dias. Guardava o minúsculo papel meticulosamente num bolso e saía. Percorria a cidade encetando a mais banal conversa com quem cruzasse. Era o louco da cidade, assim apelidava quem o visse passar; mas não lhe fugiam. Uma vez surgida a palavra a meio do diálogo – se tivesse sorte – ou do comum monólogo da vida de cada um – e que estranho lhe parecia pensar o comum do monólogo, logo aí onde nenhuma comunidade se criava –, de imediato todo o rosto se lhe iluminava interrompendo o falatório, levando a mão ao bolso onde a palavra permanecia dobrada entre as plissagens do forro do tecido; e estendia o papel ao outro, oferecendo-a e o acaso.

Não era um homem triste, embora nem sempre a sua predação desse resultados. Porém, sentia palpável a felicidade, essa, tão rapidamente doada ao outro.


 A Esperança

 Morreu na praia, ali, junto às rochas, a Esperança. A dos seios volumosos, coxas dúcteis, elásticas, que enchia o olhar. Morta, mas tão desejada, a Esperança. Olhos de contas, a carne ainda macia, nenhum animal se lhe chegou e o seu corpo já com a frescura de azul de despedida. Sobrámos nós e um lamento: “adeus, Esperança, até depois...”; mais ou menos como aquela canção. Todavia, o mar, as rochas e o horizonte de tanta fome.

Salgámo-la.

Deu-nos para uma semana.

o osso invisível

Tribunal invoca “sedução mútua” e “mediana ilicitude” em caso de jovem violada quando inconsciente.[1]

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For women, then, poetry is not a luxury. (…) It forms the quality of the light within which we predicate our hopes and dreams towards survival and change, first made into language, then into idea, then into more tangible action.
(Audre Lorde, The master’s tools will never dismantle the master’s house)



maria & manel
casal anónimo
tão português
almoçam no tasco
ao lado do tribunal

a culpa do arguido
(ouvia-se)
situa-se na mediania

a ilicitude
(dizia-se)
não é elevada

maria & manel
comentam
enquanto comem
que a carne não é tenra
que a carne
podia defender-se melhor
do carniceiro
que a carne não devia
custar-lhes tanto a mastigar
e que a carne tem culpa
de ser mastigada
se não acorda
enquanto é engolida

maria & manel
estão então satisfeitos
limpam a boca
à toalha da mesa
e prosseguem o dia
ignorando o osso
que discretamente desce
depois da deglutição

prosseguem o dia
e coitados
não sabem que morrer
vem às vezes dos pequenos gestos
o ódio instalado no sofá
no sufoco da notícia de jornal
a mão suja que quis entrar
sem ser convidada
o ossinho invisível
que devagar
se vai instalando
na garganta

prosseguem o dia
e coitados
não sabem que a culpa
nem sempre se vê
e mesmo que se visse
há quem diga que o frango
não só mostrou pelo sucedido
um enorme constrangimento
como na vida um escassíssimo
pendor para a reincidência

e maria & manel,
sejamos honestos:
dado o apetite largo
com que lamberam os dedos
à refeição
só poderiam estar a pedir
invocação de sedução mútua
e um osso
fino frágil
aguçado
- atravessando perpendicularmente
essas laringes
ao meio dia.


[1] Fernanda Câncio, Diário de Notícias. Disponível em <https://www.dn.pt/vida-e-futuro/interior/tribunal-invoca-seducao-mutua-e-mediana-ilicitude-em-caso-de-jovem-violada-quando-inconsciente-9880816.html>. Acesso a 21 de Setembro de 2018.