Verde Dourado - Haikus 

 

Verde, verde, verde, 

nos olhos  

a Primavera. 

 

Em frente corre 

a humanidade -  

passa o ribeiro atrás. 

 

Silencioso o ribeiro 

corre eterno -  

passam carros na estrada. 

 

Onde estão as sombras 

para os cavalos 

do nosso descontentamento? 

 

Como o Sol na mica 

os teus olhos 

nos meus. 

 

Onde levam a pressa 

todos os pés 

sem saída? 

 

Passo os dedos 

nas páginas em branco -  

vontade do teu cabelo. 

 

Voltar a ter medo 

de todo o futuro 

num desconhecido. 

 

Pequenos salpicos 

as flores no prado -  

o Sol na tua cara. 

 

Neva nos olhos 

da menina -  

flores de cerejeira. 

 

Caem pétalas 

cor-de-rosa -  

leio Han-Shan. 

 

No chão e no passado 

todas as 

primaveras. 

 

Passa anónima 

aquela carne 

tão familiar. 

 

Quantas bicicletas 

e eu só 

no banco de jardim. 

 

Dia raro 

gotículas de suor 

relva aparada. 

 

Passam semanas 

sem sequer 

existires. 

 

Tão longe do Sena 

hoje 

em Montmartre. 

 

Não pode ser verde 

o que sinto 

porque arde. 

 

O vestido verde 

as calças pretas 

olhos nus. 

 

Por quem espera 

ao lado do candeeiro 

apagado? 

 

Tão sozinho  

há dias -  

felicidade. 

 

Vento quente 

na minha barba - 

os teus lábios ausentes. 

 

Chegam as flores 

de cerejeira 

e eu a casa. 

 

Onde foi 

a infância 

dos meus versos? 

 

As árvores 

quase eternas 

porque não lembram. 

 

Pode o Inverno durar 

mas o verde 

regressa sempre. 

 

Sobre o verde 

manto 

a eternidade. 

 

Nos olhos 

a eternidade 

sobre o verde manto. 

 

Gotas frias 

de chuva no pescoço 

até na Primavera. 

 

Há amores que duram 

verões 

outros infernos. 

 

Assenta o pó 

tudo perde 

a clareza. 

 

Depois da última 

cerveja 

tudo sabe a solidão. 

 

Lembro-me do 

David Carradine 

no dia do Anthony. 

 

Uma vida a balançar  

e acabar 

pendurado numa corda. 

 

Quantas voltas 

ao mundo 

no nó da corda. 

 

“Onde deixaste 

o cajado?” -  

ao lado da cegueira. 

 

No vento ouço 

aquela abelha 

à porta do cemitério. 

 

Está no Sol 

toda a vontade 

da iluminação. 

 

Nos beijos  

irrepetíveis 

a eternidade. 

 

Pode não salvar a vida 

a Bic preta 

mas salva. 

 

Quem me sonhas 

quando eu 

ainda acordado? 

 

O descanso 

depois da segada 

o teu púbis. 

 

O arco-íris 

usa apenas uma cor -  

meia-noite. 

 

No céu dourado 

a vontade 

do dia quente. 

 

De quem és 

fome de todos 

os sóis ausentes. 

 

Aqueles dias tristes 

hoje uma alegria -  

chove. 

 

Em cima do muro 

uma brisa quente -  

tempo das cerejas. 

 

Dias frios 

no verão -  

sabor a partida. 

 

Sabem a partidas 

os dias frios 

no Verão. 

 

A beleza do fim de Verão 

apenas no amadurecer 

das uvas. 

 

Quanto mosto 

desperdiçado 

na ausência. 

 

Na escuridão 

o ouro frio 

como qualquer metal. 

 

Chuva de Julho -  

olhos à janela 

da adolescência. 

 

Esconde-se no tinto 

a luz dos dias 

escuros. 

 

No bruxulear das velas 

todos os contos 

da infância. 

 

Abrir uma de Bordeaux 

e regressar 

com a caneta a Paris. 

 

Perde-se a vida 

num cigarro 

ganha-se num beijo. 

 

Temos o tempo 

em que podemos 

contá-lo. 

 

Sonhamos com o tempo 

que acabamos 

desperdiçando acordados. 

 

Dá-me um último 

beijo -  

esqueci o final. 

 

Escrever às escuras 

para encontrar nas sombras 

a verdade. 

 

Vinho tinto 

à luz das velas -  

não anoitece sequer. 

 

Água e luz 

algum tempo -  

nasce a beringela. 

 

Verde que se enrola 

gentilmente 

no esqueleto. 

 

1“Não me odeiem” - 

todas as canções 

um pedido. 

 

Ao fim da tarde 

o cheiro dourado 

do feno. 

 

Primavera- Verão 2018 

 

Turku-Helsínquia 

A Celeste do sétimo ano

Summer Evening by Edward Hopper.jpg

Não tem dentes na boca, a galdéria, nem um, apresenta a cremalheira partida, uma boquinha de bebé com as gengivas rosáceas. Os primeiros dentes tombaram à força dos estouros do Zé, o chulo. Os outros apodreceram de apodrecimento natural, e também porque a droga, quando mamada em abundância, é material que perdoa pouco. Coitada, ofertando felácio na esquina, pobre, logo a Celeste que era tão boa em termos de feições e beijocava de uma maneira que...ora bem, para descrever seus beijos teria de consultar enciclopédia e explicar o fenómeno das estrelas cadentes e da invasão de Marte por Arnold Schwarzenegger naquele esquecido filme de domingo. A língua de Celeste, bicho húmido, chupa-chupa, pirolito, metia ao barulho matemática, pintura, ciência, química e aromas. Celeste, desfigurada. E eu que a pedi em casamento no sétimo ano, na aula de inglês, perante o mumificado Luís Pedro, a melhor fotografia viva de pôr na campa que conheci. Luís Pedro, cábulas de plantão, empenhado em fazer voar a ponta do giz até à nuca do professor. A propósito de professor, isto de lecionar em Massamá esfalfa um santo. Ontem, de alma mirrada, buscava conforto nos beiços de uma menina de rua, e quem encontro, Celeste, a mesma do sétimo ano, agora na pocilga. Gorda, quiçá, mãe de três potros, casada com um devorador de feijoadas ou pedreiro ou jardineiro ou calceteiro ou canalizador, imaginava-a a fazer qualquer coisa menos associada a um gandulo agarrado à heroína, acometido por recorrentes impulsos de arrancar dentes ao soco. Celeste, debruçada sobre o carro, cuspia que o serviço me custaria dez biscas - pagas cinco no imediato, dez no fim, com gorjeta e taxa de juro, que isto é como nos bancos, pagas em cómodas modalidades, mas a dobrar. De modos que a Celeste, desdentada, me desabotoou as calças de ganga da Levi’s que a minha mãe comprou nos saldos. E não tardou a matar-me a saudade daquela vivacidade que só ela tem. Retomei o amor, pedi-a em casamento, ela aceitou, amanhã compraremos as anilhas de ouro e já planeamos fugir para o Brasil, uma vez que de má reputação estamos cheios até ao pescoço.

- 50 Andorinhas -

   

           PRIMEIRAS 10 ANDORINHAS

                                I

Amar exige esquecer-me, exige

o mais profundo desejo de dissolução.

                               II

Não esqueças a água, o poder da água, o

poder do esquecimento. A cura.

                              III

Louva, entre o fogo dos dias, Deus, a pos-

sibilidade do mundo longe do olhar.

                              IV

Pondera, na escura solidão da dor, os

“nãos” a dizer àquele que amas.

                              V

Deseja, deseja sempre. Deseja sobretudo

nunca desejar o desejo. O corpo nu.

                              VI

Lento são os teus pensamentos em dias de

nevoeiro. Sonha, procura aquilo que és!

                              VII

O corpo arrastado da árvore que morreu

é hoje esse sorriso entre mãos.

                              VIII

O som dos dias misturados em suor

é a tentativa de ir além do corpo.

                              IX

Sôfrego homem de pele vermelha não

desistas da luta inútil. A vida.

                              X

Pedra, calçada ou virgem abandonada na

montanha, pede a liquidez do suor.

 

            MAIS 24 ANDORINHAS

                              XI

Espalha o teu cabelo curto nas margens da

cadeira onde sentaram os reis e recolhe.

                             XII

Secura do Ser, da vida, dos dentes secos,

esponjas entre mãos. As tuas doces mãos.

                           XIII

Amor, se eu pudesse dizer amor. Esquece tudo

aquilo que sonhaste. Voa além da dor.

                            XIV

A palavra secando em estendais divinos,

esticando o seu corpo até à incompreensão.

                              XV

Homem de sonho com palavras de sal espera

a dor lentamente. Espera. Recolhe-a. Sim.

                             XVI

O poderoso corpo em esforço seria talvez a

solitária vontade dos homens. Todos e tu.

                            XVII

Não mais provoques a dor, não mais

esperes a poderosíssima voz do outro.

                           XVIII

Fechada, a concha, não reconhece a dor.

O mar é toda uma dimensão imaginada.

                           XIX

Sossega, mente de espinhosa visão, sê

a folha branca desenhada. Condensada.

                          XX

Pelos do mar, curvas do desejo. Vê

a escuridão do teu interior em ruína.

                          XXI

 Colapso de tempo, no pequeno corpo mole,

dá-lhe desassossego do lugar. Dispersa pena.

                        XXII

Peruca de cabelo branco, cabelo branco de

peruca. Branco fio de peruca. Brancura seca.

                       XXIII

No terceiro dia o sol não tinha forças,

o grande sol não tinhas. Ó nasceu.

                        XXIV

Ponderado senhor de gravata vermelha

quem sois sobre o frio da montanha?

                         XXV

Entre o poder da calçada, a teimosa areia

procura dizer a verdade da vida.

                            XXVI

Unha pobre, de quem é o dente que

te tritura? Seca, pintada, afiada.

                           XXVII

Pena de corvo lançada ao vento da morte,

diz-me onde encontrar a perdida nuvem.

                         XXVIII

A coluna em inclinação deseja toda a

negada verticalidade. A moleza do corpo.

                        XXIX

Espelhados são os esforços dos dados,

das mãos, dos sins e dos nãos . Nega.

                        XXX

De encontro a encontro aperta o amor

que te ficou. Encaixota-o ou afoga-o.

                       XXXI

Lenta é a palavra esticada, um corpo em

dimensão de horizontalidade infinita.

                      XXXII

O rio, de onde saíste, era tudo aquilo de que

precisavam os mil peixes sobre a mesa.

                       XXXIII

Do lado de cá, tudo pode ser possível, se

fizermos de um ponto a explosão da tua alma.

                      XXXIV

Não, dizes-me Não. E eu não posso

dizer-te. A seta reenviada marca o sim.

 

               MAIS 13 ANDORINHAS

                      XXXV

Espera lentamente que a desilusão dessa-

pareça para nela renasceres, tentares.

                        XXXVI

Longo é a palavra do desespero, a única que

conhece a verdade que a razão esqueceu.

                         XXXVII

Sonha. Dá ao corpo o descanso. Recolhe sobre

ti a poderosa vontade de Deus. Acende o silencio.

                         XXXVIII

Não repintar. Repete sempre o sim, mes-

mo que todo o teu corpo sangre.

                          XXXIX

As folhas das árvores resistem ao cair e

eu, aqui neste jardim, ainda estou vazio.

                           XXXX

Nau de rochosos tijolos voa sobre os

homens e mulheres que exigem o Sim.

                     XXXXI

Esmaga a dúvida, a dor, o peso do medo,

vê sobre a ruína a possibilidade nata.

                        XXXXII

Larga o peso, esconde o rosto. Vê sob

todo o manto a desejada dissolução.

                       XXXXIII

Narciso sonhou sozinho no meio do

jardim. Engolido pelo ego nasceu.

                       XXXXIV

Carne grelhada no cume, sangra a dor

da inesperada melancolia. Dorida e cega.

                       XXXXV

Senhor, dá-lhe a fria azeitona no cérebro.

Dá-lhe a cinzenta e fria cebola dos dias.

                       XXXXVI

Da ordem escolhe o sabedor a linha reta

para o seu caminho, o desgraçado erra.

                        XXXXXVII

Se tudo o tempo engole, que me coma,

lentamente, até ao esquecimento total.

 

          ÚLTIMAS 3 ANDORINHAS

                        XXXXVIII

Seca, a memória, cai sobre o corpo e rompe

a última e frágil esperança. Regressas viva.

                        XXXXIX

O pavão do jardim não mais cantou a voz

do poeta. Morreu no relâmpago do gemido.

                        XXXXX

 E no esquecimento total reconheceremos

a dimensão da dor ambulante. Una.

31.05.18

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Vesúvio ou A Poesia

Viagem em Itália de Rossellini (1954). Katherine (Ingrid Bergman) e Alexander (George Sanders) são o casal Joyce, ingleses de visita a Itália (uma vez mais, como em Um Quarto com Vista de Forster). Dão-nos uma conversa edificante sobre poesia ou talvez, lá no fundo, sobre outras matérias: a natureza do gelo, o ciúme, a saudade, a paixão, ou todas essas coisas (e as outras) ao mesmo tempo, como é próprio, aliás, da poesia. Ela existe porque os diálogos avançam precisamente assim, entre surdos que insistem em ouvir-se.

Mas há um terceiro ponto de vista, o do responsável que lhes mostrou a casa: 

«Quero que vejam a varanda. Aquele é o Vesúvio. Desde a erupção de 1944 que está inactivo. Mas a temperatura começa a subir. Atrás daquela primeira montanha fica Pompeia.»

Não o sabe, mas é ele quem melhor nos apresenta a poesia: vistas para a quietude, iminentes erupções. Fóssil e fogo.

O filósofo enquanto detective; Processo do acaso da felicidade; A Esperança

O filósofo enquanto detective

 Fechou o caderno mantendo o indicador a cumprir a tarefa de marcador e, durante alguns segundos, repetiu o texto que acabara de ler como uma criança cantando uma ladaínha: “o filósofo deveria ser como um detective. a ideia é o crime perpetrado ou em vias de se realizar – embora neste caso ele seja o assassino. As duas vias complementam-se; o melhor seria ser um detective que apagou da sua memória o crime que executou e segue em busca das suas próprias pistas até que se confronta com o trauma, a «verdade», como em Memento.

Uma ideia é um conjunto de elementos díspares dispersos, o filósofo agrega-os, tece a trama lógica – causa e efeito são produzidas a posteriori e a fortiori. Nenhum criminoso quer ser apanhado ou parado, as pistas – ideias, argumentos, conceitos – são as marcas inadvertidamente largadas.

Para o assassino ou o criminoso, o processo é ligeiramente diferente. Ele joga com as probabilidades, planeia os movimentos, experimenta os passos como um jogador de xadrez, vai tentando, uma e outra vez, até que o plano não aparenta falhas e eis que a ideia se apresenta e tu cais no seu ardil. Só os assassinos são criadores. Contemple-se nos grandes pensadores, estes são os assassinos; os seus epígonos e seguidores, ou críticos não-criadores, são os detectives.

Por vezes um desses detectives comete um crime. Qual dos dois queres ser, o criminoso ou o detective?”


 

Processo do acaso da felicidade

 O seu desejo era simples. Capturar, por dia, um acaso e, nessa captura parcial, reconhecer a configuração possível e actual do Acaso, tão imperceptível no hábito.

Acordava e anotava a primeira palavra que lhe ocorresse. Isso, todos os dias. Guardava o minúsculo papel meticulosamente num bolso e saía. Percorria a cidade encetando a mais banal conversa com quem cruzasse. Era o louco da cidade, assim apelidava quem o visse passar; mas não lhe fugiam. Uma vez surgida a palavra a meio do diálogo – se tivesse sorte – ou do comum monólogo da vida de cada um – e que estranho lhe parecia pensar o comum do monólogo, logo aí onde nenhuma comunidade se criava –, de imediato todo o rosto se lhe iluminava interrompendo o falatório, levando a mão ao bolso onde a palavra permanecia dobrada entre as plissagens do forro do tecido; e estendia o papel ao outro, oferecendo-a e o acaso.

Não era um homem triste, embora nem sempre a sua predação desse resultados. Porém, sentia palpável a felicidade, essa, tão rapidamente doada ao outro.


 A Esperança

 Morreu na praia, ali, junto às rochas, a Esperança. A dos seios volumosos, coxas dúcteis, elásticas, que enchia o olhar. Morta, mas tão desejada, a Esperança. Olhos de contas, a carne ainda macia, nenhum animal se lhe chegou e o seu corpo já com a frescura de azul de despedida. Sobrámos nós e um lamento: “adeus, Esperança, até depois...”; mais ou menos como aquela canção. Todavia, o mar, as rochas e o horizonte de tanta fome.

Salgámo-la.

Deu-nos para uma semana.