A Bacana: Poemas Reunidos I

Autores:
Ágnes Souza
Alice Vieira
Ana Bessa Carvalho
André Edson
Bruno Nascimento de Abreu
Bruno M. Silva
Carla Diacov
Chrischa Venus Oswald
Francisca Camelo
Ismar Tirelli Neto
J Carlos Teixeira
José Pedro Moreira
Jussara Santos
Laís Araruna de Aquino
Luís Quintais
Luiza Nilo Nunes

Mafalda Sofia Gomes
Matheus Guménin Barreto
Miguel Abalen
Otávio Campos
Paulo Pais
Sergio Maciel
Stephanie Borges
Tatiana Faia

Prefácio:
Luca Argel

Coordenação editorial:
Bruno M. Silva
Francisca Camelo
J. Carlos Teixeira
Mafalda Sofia Gomes

Preço: 7,5 euros (com portes incluídos para Portugal)

Para adquirir mandar email para abacana123@gmail.com

A Visão de Gubaidulina*

(Poema para 2 vozes, 2 línguas e Vários sons)

 

 “Tudo recomeça: ele passa outra

          vez pelo lugar de origem”

                       Manuel Gusmão

 

                                               I

Vater. Os olhos ensanguentados /flecha no céu/
Vergib. timbram as mãos /sujas /pregadas na dor.
Ihnen. Secos /os lábios entreabertos /roubam o
Denn. denso e espesso ar. O /Coração perfurado/
Sie. evoca aquele que o ama./Uma criança brinca./
Wissen. Nos olhos /onde se espelha o trovão/ a
Nicht. proclamada palavra /o seu perdão/ flutua
Was. entre o seu corpo e o condensado tempo.
Sie. O seu sangue vai escorrendo pela madeira
Tun. espessa /em lágrimas /entre/a dura multidão.

                                         II

Weib. Pálida mulher de azul cobalto não chores.
Siebe. Esquece esses olhos de coral /triste visão/
Das. e recolhe pela manhã esse meu duro corpo.
Ist. Retira esses teus belos olhos sobre os meus
Dein. pés e fixa-os no homem alto ao teu ombro!
Sohn. Mãe /novo filho implora o teu beijo /doce/
Siehe. Irmão/ imaculado/ novo ninho te espera
Das. – um que não conhece o frio ou a amargura.
Ist. Nas horas incertas dissipar-se-ão os nevoeiros
Deine. e na dor fixa o seu coração ditará o fim da
Mutter. tua angústia/A mão pousará sobre a tua./

 

                                         III

Wahrlich. Escurece. O céu espesso/ negro de cinzas/
Ich. traz acorrentadas compaixões e pesadas feridas.
Sage. Rostos mergulhados no medo / perdas e secas
Dir. aflições. /O acordeão de lágrimas irradia a dor./
Heute. Poderoso /ser divino/ salva-me do meu medo
Wirst. e com a tua mão guia-me pela fria escuridão.
Du. Atormentada fina cegueira /aceito./ Percorres 
Mit. /feito luz branca/agarrado à minha mão. Somos
Mir. – tu e eu /Falas arrancadas às portas douradas.
Im. Neste entardecer/ainda hoje/ atravessaremos o
Paradiese. corpo/linho de violinos/ e sem pesada dor
Sein. teremos sobre a nossa rosa/ o olho/ o ser imóvel.

                                           IV


Mein. Focado / o Sol / Brilhante. / Vi a águia /vermelha
Gott. como os peixes do rio radiante. / O rio / O abis
Mein. mo ali./ Ofusco / O sol Leve/ O mundo gira/
Gott.  Embate Bruto / o Sol. / Renome./ Sai da minha
Warum. mente  frescura/ mentes! /A criança brinca./
Hast. O corpo divino de homem recorda a água/ Essa
Du… da frescura eterna./ Perco sangue!/ Perdendo o
Mich…sangue/O coral./ Lançamento de elmo e émulo.
Verlassen O corpo em abandono terá fim/ Será o fim!

 

                                            V

Mich. Lábios entreabertos /secos/ onde a agonia ainda
Dürstet. não voou. /Intervalo interno/ eterno/ Convexo.


                                             VI

Es. Sacrificados olhos /em angústia/ a sua missão foi
Ist. completa. Cobre-se a cova de Adão e tu /amada
Vollbracht. mulher /floresces para o núcleo da flor.


                                           VII

Vater. Pomba/ trazida no vento/ de cândidas penas/
Ich. recolhe serenamente esta minha cansada alma.
Befehle. Puro/ este meu corpo/ que adormece entre
Meinen. farpas de madeira castanha/ espera ladrões/
Geist. futuros soldados e mulheres revestidas a límpidas
In. lágrimas de pranto. Este é o manto que o meu puro
Deine. sangue ampara./Abandonados os que choram!/
Hände. E eclipsaram-se os céus e o Templo ruiu. Assim...

                                                                                                                   01/08/09

                                                                                                                   11/04/19

Dali - Cristo de São João da Cruz, 1951..png

Salvador Dali - “Dali - Cristo de São João da Cruz”, 1951. (Pormenor)

*”A Visão de Gubaidulina” teve a sua primeira versão em 2009. Seguiram-se outras 4 ao longo dos anos. Esta é a 5ª versão, a versão de 2019. A sua reescrita continuará a ser feita sempre que o autor assim o desejar.

Dois Poemas de Dirceu Villa

cosmopolis

roma. sob os meus pés, amálgama. trajano
faz serpear a história; raízes envolvem os 
pés de estátuas, os deuses todos cegos e,
no rosto do busto de césar, os olhos sem

pálpebras de mussolini revivem. no panteão,
ciclópico, jeová penetra em forma de luz e
banha pessoas de bermudas floridas, celular
nas mãos, paciência; convicção alguma em

formas clássicas: museu; imergem no tevere
pedras de pontes, cores do casario, e o céu
se suja de vida e de séculos [ombros de atlas].
eterno repúdio aos não-cidadãos, a velha e

viva ordem eqüestre; talvez, assim, o soldado
limpe a longa espada enquanto rola a cabeça
da santa, em são clemente, masolino: soa a voz 
revolta de emma bonino, pálpebras apertadas.

***

terror sagrado

todas as palavras juntas em qualquer ordem imaginável
não reconstruirão o cosmos; a mão trêmula de abraão;
mitra ordena a suas estrelas desfazer o touro; um naco
de pedra vem inscrito dez vezes com raios, terror sagrado. 

membros da família rastejam buscando a carne do irmão;
com tanto sangue na boca o assassino sufoca após ter
matado a todos; o carro desgovernado pára somente em
pedaços contra o muro; o tirano cai fatiado nas entranhas 

por outro tirano; é um ruído que encontram atrás do muro,
é um sinal que se emite pelo cristal líquido, é a radiação
de encontro ao ouvido, um sussurro; são as ondas que
oferecem o inimigo sobre o altar, uma injeção no cérebro, 

o que faz gozar. as falas comprimidas em grunhidos de
parte a parte, criaturas se esgueiram revivendo das sombras
dos séculos; pedem sangue; pedem sanha; pedem surtos;
zeus esmaga raios com os dedos; os filhos, devora saturno.


[Perfil de Dirceu Villa na Enfermaria 6 aqui]

Fallout

Não é de ti que tenho saudades, mas das ruas escuras das aldeias
Quase desertas e do cheiro a cona nas casas abandonadas,
Os dedos fatigados pela cerveja empurrada na solidão dos tascos,
A entrar na inocência sem lhe tocar, porque está tudo perdido
Antes da evidência das portas dos carros a trancar verdades submissas,
Têm passado anos sobre mim e só tenho ganho o cansaço
Que cada nome me planta nas têmporas geadas pelas manhãs perdidas,
Que segredos te poderia contar, se não fôssemos só carne e fome,
E sonhos contrariados de joelhos, hóstias e penitência,
A primavera é o cheiro que fica no mento imberbe e sedento,
Quando os joelhos se juntam em direcção a um tecto quase ruína,
Não é de ti que tenho saudades, mas das palmas abertas
Revelando ao luar o caminho até ao oblívio azedo dos dias quentes,
O pecado emprestado à festa da terra, o granito que rasga melhor
Que qualquer beijo, com ou sem vontade, a pele que cede, sempre.

Turku

08/04/2019