Do Inútil e da Sobranceria

Gilbert Garcin, Funambuliste, 2002

Gilbert Garcin, Funambuliste, 2002

Frase lançada no comboio: “Ontem fui ao chinês comprar uma coisa que não serve para nada”. Num alien de inteligência média (na Escala Cosmológica das Inteligências Quânticas, esse nível colocá-lo-ia muito acima da inteligência humana actual), este paradoxo seria sintoma da nossa decadência début de siècle, desfecho irredutível de uma belle époque onde a máxima democratização da comunicação e a Pop music eram os impulsos sagrados conduzindo aos reinos da paz e da prosperidade (separo-os para se poder nomear two boys for two jobs).

Ir ao chinês comprar o inútil aparece como o paroxismo do consumismo autofágico, mas há uma subtileza pragmática que ainda não contei: a frase não continha qualquer censura crítica nem foi apresentada como um placebo que recuperasse o sentido no resultado que não tinha na essência (“compre o inútil e verá que deixa de ter dores de costas, ou desaparece essa terrível sensação de exclusão social!”, diria um guru do marketing). Sem essas vias de compreensão, pareceu-me perceber uma espécie de sobranceria classista de quem frequenta essas lojas de imitação barata, contaminadas pela volatilidade de polímeros sintéticos, mas se quer demarcar de quem lá vai por razões vitais. Explico melhor: há uns tempos havia os frequentadores de museus ou acontecimentos de “alta cultura” que relatavam esse modus vivendi como suficientemente blasé para com certo cinismo dizerem, sem que percebamos ainda o verdadeiro sentido: “frequento a alta cultura porque sou da alta sociedade e frequento a alta sociedade porque sou da alta cultura”. Isto deu-se num tempo em que os artistas eram ricos, mas a indigência proverbial dos génios do belo parece regressar agora com um vigor incontrolável de vingança, e já ninguém frequenta patavina.

Do mesmo modo, há quem tenha Facebook mas “não ligue”, tenha um clube de futebol mas “não saiba o que se passa”, um doutoramento mas “acuse os títulos académicos de serem os últimos resquícios da verticalidade hierárquica tribal”. Noutros termos, parece que vivemos “dentro” sempre a fugir para “fora”, uma espécie de novo funambulismo, não por desconfiança matricial, mas com o medo infantil da vulgarização, de não nos distinguirmos do movimento, poderoso mas acéfalo, das massas. E este talvez seja o marcador cultural que mais tarde os historiadores destacarão do nosso tempo: estamos presos às “redes sociais” e às “lojas dos chineses” mas inventamos inúmeras subtilezas para negarmos essa imersão, náufragos a tentar voar.