Catarina, mulher sem língua

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Este foi o pior natal, repito a mesma ladainha todos os anos, mas este foi mesmo o pior. Começou com o aparelho de karaoke instalado na sala e com o António, meu cunhado e comparsa, o mesmo que me auxiliou a tratar do sarampo a duas anafadas estrangeiras num pinhal, espalhando alegria pelo lar com borrifadas de oh oh oh de pai natal. A presença da sogra contribuiu para o meu desalento. A bruxa não fecha a bocarra por nada, sempre a envenenar o meu sagrado matrimónio. Esforcei-me para não estragar a festa. Cantei Tony no karaoke, puxei a mulher para dançar. Jurara que não seria eu a entornar o caldo. Calei-me, após cotovelada da esposa, quando a filha, minha única cria, criatura para a qual tinha tantos, tantos planos (nenhum incluía cursos de cabeleireira), deu entrada com um artolas de argola na orelha. "Que se danem os filhos", pensei. Que se tramassem os espermatozoides saídos de mim. Tratar os filhos como os espermatozoides embrulhados nos guardanapos de todas as manhãs. "Lá estás tu", respondeu-me a mulher, após educada tentativa de descobrir se o argolinhas tinha emprego. Não se pode dizer nada às mulheres, amuam, fazem filmes, só se dão bem entre elas. No prostíbulo do Justino elas bem fingem: uma garrafita de whisky para aqui, umas danças com apalpadelas no rabiosque para ali. Todas elas, ucranianas, brasileiras, portuguesas, sabem que o que conta é o carcanhol.  Fingem interesse pelos nossos desabafos, metem-se debaixo de nós, mas não se dão a conhecer.  Vejo como as meninas do Justino cochicham nos corredores, a intimidade que têm umas com as outras. Elas só nos toleram por condescendência. É como eu com a minha sogra, carrego-a há vinte e tal anos devido a um qualquer amortecimento de coração que me faz ser uma espécie de manteiga derretida andante. Se não a sustentasse, sobreviveria à custa de esmolas. Na noite de natal não aguentei. Quando contou à filha que me avistara dias antes de cigarro na beiça encostado à porta do cortiço do Justino, nem pensei, acertei-lhe com o jarro de sangria na nuca. Tendo perdido os sentidos e desfazendo-se em sangue, a velha foi logo encaminhada para o hospital. Visitei-a ontem. Poderia estar pior, isto é, morta. Não fala por causa da pancada, dizem os especialistas. A minha opinião é outra. A cobra perdeu o pio por ter mordido a língua. O que a calou foi o próprio veneno.