Entrevista a um estudante de doutoramento

Jorge Chan, The Origin of the Thesis, PhD Comics

Jorge Chan, The Origin of the Thesis, PhD Comics


Hoje resolvemos olhar de perto uma realidade que afecta muitos dos nossos colaboradores. A sua condição de estudantes de doutoramento/ jovens investigadores. Fomos entrevistar um destes jovens. O estudante combinou encontrar-se connosco num café na esquina da Biblioteca Nacional. Informou-nos que não teria muito tempo para conversar connosco, mas que, ainda assim, tinha aceite porque entendia o interesse documental da entrevista. De ténis all stars, óculos de massa, o estudante exibe o tique nervoso de tamborilar com os dedos na mesa.

É comum os estudantes de doutoramento em Portugal gerirem o seu próprio horário de trabalho. Trabalha muitas horas por dia?

É só quando me começo a sentir como um autómato que sinto que tenho de parar. É raro, mas quando me dá atinge-me como o equivalente metafísico de uma dor de dentes.

Faz parte de um grupo de investigação coeso? Há muito diálogo entre os jovens investigadores?

Diálogo, não muito. As equipas de investigadores são pequenas e agora com os cortes nos orçamentos vai ser cada vez mais cada um por si e deus a olhar por todos. Nas humanidades então cada especialista tende a ser um exemplar único. Também temos uma tradição de não haver muita competição entre especialistas e Portugal é um país de brandos costumes em que se gosta de honrar a tradição. Mas costuma acontecer que por ciclos me sento sempre perto da mesma pessoa aqui na biblioteca. Acontece que estas pessoas por vezes não estão aqui por períodos extensos. Dois, três meses e desaparecem. Eu próprio me esqueço frequentemente do elemento humano. E há alturas em que entretenho conversas de corredor abjectas, com indivíduos que me começam por perguntar qual é o meu orientador, a faculdade e o tema da minha pesquisa, mas cuja maior curiosidade mesmo é saber a quantidade de palavras que sou capaz de debitar por dia no manuscrito da minha tese, na intricada relação tempo/débito de palavras em manuscrito word. Este é o tipo de diálogo intelectual que mais comummente tenho entretido. E esta é sempre a questão que mais ansiedade gera entre os estudantes de doutoramento. Na verdade, não raro mal orientados ou completamente desorientados, esta é, à medida que o financiamento se esgota, a grande questão. A menina está a apontar? Questão com Q grande para se entenda que é conceito. Quer que eu explicite o que entendo por Questão?

Não, deixe estar, não é necessário. Algum motivo em particular para ser essa a questão determinante?

Bom, se escrevemos menos do que o nosso interlocutor, ele poderá adoptar uma atitude paternalista, dar-nos conselhos. Dar-se a intimidades. Pousar-nos a mão no ombro. Se ele próprio for de escrever pouco, as suas outras vulnerabilidades começam a surgir. Dificuldades em fazer o índice. Ater-se ao plano. Publicar artigos. Mas, no fundo, este indivíduo sente-se bem com ele próprio se dermos a entender que estamos pior do que ele. No entanto, se escrevemos mais, mas muito mais, ele poderá sentir-se emasculado. Os sintomas variam. É sempre preciso ter cuidado com o tipo de resposta que se dá, esta é a pergunta crucial, que muitas vezes pode definir toda a estrutura das relações sociais de um estudante de doutoramento. Ao responder é preciso medir o grau de ansiedade ou relaxamento do nosso interlocutor. Às vezes não é tanto o caso de não melindrar a pessoa, quanto o de não a deixar à beira de um ataque de nervos. Há estudantes de doutoramento muito nervosos. A menina sabe, escrever tese em Portugal não é emprego, é maneira de tentar enganar o desemprego, mas a desocupação às vezes sobe à cabeça do jovem investigador lusitano.

A minha eficácia é da ordem da da personagem de Uma Thurman em Kill Bill. Em média oitocentas palavras em meia hora. Sou capaz de escrever dezasseis horas sem parar, às vezes escondo-me aí nos recantos dos guardas para conseguir ficar 24 horas na biblioteca. Vantagem, vantagem, vantagem. Liberdade? Criatividade? Isso é para meninos. Eu é como os ciclistas num sprint de montanha. Nem para ir à casa de banho paro. Este saquinho com o tubo intravenoso? Cafeína, menina.

E escreve muito num dia de trabalho normal?

A minha eficácia é da ordem da da personagem de Uma Thurman em Kill Bill. Em média oitocentas palavras em meia hora. Sou capaz de escrever dezasseis horas sem parar, às vezes escondo-me aí nos recantos dos guardas para conseguir ficar 24 horas na biblioteca. Vantagem, vantagem, vantagem. Liberdade? Criatividade? Isso é para meninos. Eu é como os ciclistas num sprint de montanha. Nem para ir à casa de banho paro. Este saquinho com o tubo intravenoso? Cafeína, menina. Directamente na veia. Para que não haja dúvidas do meu amor à produtividade. Em academia que se preze o estudante de doutoramento nunca tem tempo que chegue para fazer todo o trabalho que tem para fazer.  Neste momento tenho um manuscrito de quatro mil e quinhentas páginas. O meu objectivo é debitar mais mil nos próximos dois meses.

Quando isto estiver acabado, vou precisar de assaltar um banco para pagar a impressão e de um guindaste para entregar na secretaria. A funcionária estrábica que costuma aceitar a submissão de teses lá na faculdade vai entortar ainda mais os olhos.

E acredita ser possível?

A este ritmo acredito ser possível. Quando isto estiver acabado, vou precisar de assaltar um banco para pagar a impressão e de um guindaste para entregar na secretaria. A funcionária estrábica que costuma aceitar a submissão de teses lá na faculdade vai entortar ainda mais os olhos.

E acredita que haverá um júri disposto a ler uma tese com essa extensão?

O júri? Não conseguirá articular uma palavra por causa das cefaleias, causadas por excessiva exposição a tinta impressa em papel. Os únicos arguentes possíveis desta tese serão os que não a leram (em média estima-se que haja sempre uns três ou quatro desses em cada júri de doutoramento).  

É comum os estudantes de doutoramento gerirem bem esse tipo de pressão?

Nem sempre, menina, nem sempre. Nunca me hei-de esquecer deste tipo. Víamo-nos todos os dias, e até chegámos a trocar umas palavras, nos cinco minutos em que os estudantes de doutoramento se permitem ter vida própria (houve uma altura em que o meu intervalo coincidia com o dele). Um dia abriu dois livros à minha frente, abriu um terceiro, fechou-o com estrondo e raiva. Ao contrário da rotina o tipo nem tinha tirado as coisas da mochila. Com o rosto congestionado, começou a soluçar incontrolavelmente, pegou no casaco e desapareceu para nunca mais. Um colega teria refutado a sua hipótese, ou ele tinha descoberto que ela estava errada, ou que a sua tese já teria sido escrita. Eu cá não perco tempo a ler. Até no teclado do multibanco às vezes desato a debitar fragmentos de tese. No piano da minha tia. No ombro da deleitosa esposa a tentar fazer amor. Na toalha de mesa à espera do jantar.

Mas com esse grão de empenho não teme uma crise de nervos? Um esgotamento?

Não. É como eu sempre digo, menina, o truque para ser bem sucedido a escrever uma tese de doutoramento é não parar para pensar. Nunca.