DIAS BONITOS

Cartago pediu uma cerveja mais escura e amarga e eu pedi uma cerveja normal. Dei o primeiro gole e veio uma náusea branda, quase imperceptível. Quis conversar sobre as meninas que pretendia ver à noite, mas continuei calado: começava a ficar ridículo falar de miúdas e das possibilidades de me entender com elas. O sábado era sem sol, quieto, e, do alto dos telhados, vinha um rumor de pássaros que, batendo asas, alçavam vôo ou pousavam. Estávamos junto ao balcão do cinema da Rua Sebastião, o público para a sessão das quatro horas não chegava e, além de nós e das mulheres que serviam a bebida, não havia mais ninguém.

Enquanto bebíamos, por volta das cinco horas, o sol deixou de se esconder atrás das nuvens e projetou figuras no chão do hall. Ao cheiro de poeira e mármore somou-se o aroma de terra e, mais distante, o de pólvora. Pagamos as bebidas, saímos e tomamos o rumo do salão de bilhar da Rua São José. Cartago afirmava estar bêbado e andávamos devagar.

O salão de bilhar também estava vazio e pegamos uma mesa nos fundos. Fizemos alguns comentários sobre aquela que parecia ser a amante ou filha do sujeito que administrava o lugar, então um homem que jogava cartas com um bêbado bastante conhecido. Depois chegou a prostituta de pele escura e que sempre usava um chapéu de crochê. Ela também sentou-se junto ao balcão, mas não pediu nada. Depois entrou um grupo formado por rapazotes e raparigas (os meninos vestidos de negro, com camisetas t shirt estampadas com fotos de bandas de rock, e as meninas com no máximo quinze anos de idade, a maioria acima do peso, e algumas, além dos trajes escuros, tinham as unhas pintadas de negro). Eles pegaram a mesa ao lado e, como não sabiam se posicionar, volta e meia esbarravam em mim e Cartago. O sol estava em seus estertores e uma penumbra quente e espessa caiu sobre o lugar. O administrador acendeu as luzes e também ligou o rádio e sintonizou numa estação que tocava rocks que tinham feito sucesso há muitos anos.

Com o crepúsculo sobre a cidade, já passeávamos no quarteirão do colégio onde havíamos estudado no final da década passada. Continuava igual, mas o lugar transformara-se na sede de um curso para enfermeiras. O Pato, que ficava ao lado do velho colégio e que tinha abrigado as primeiras partidas de bilhar, era agora uma residência de dois andares. Corriam os últimos dias de Agosto e, ao olhar para o telhado da casa do bispo e depois para a cúpula da catedral, soube que o calor tinha regressado (o vento quente e grosso, revoadas de pássaros invadindo as copas das árvores, dos gramados da praça vinha – ansioso, áspero e familiar – o odor de relva e de terra queimada que não se percebe nos dias frios, enquanto o azul do céu, em vez de empalidecer, escurecia cada vez mais).

Cartago deixou-me em casa e combinamos que mais tarde sairíamos com o meu carro. Antes do banho, ainda liguei para um conhecido e falei da noite e dos planos para a noite. Ele pareceu animado e apontou o endereço onde eu e Cartago poderíamos apanhá-lo mais tarde.

A morada indicada por Etrusco parecia um prédio abandonado. Apertamos a campainha e, passados alguns segundos, ouvimos um zumbido, depois um estalo, depois o portão abriu sozinho. O interior do prédio lembrava um desses pátios onde são deixados carros imprestáveis ou apreendidos pelos bancos. Um muro alto e imundo demarcava o fim do terreno ao fundo e à esquerda, mas, à direita, havia a parede do prédio. Imersos na sombra, caminhamos rente à parede até um retângulo de luz que, na verdade, era uma porta que dava para uma escada. Etrusco surgiu no último degrau e nós o seguimos até o interior de uma suja cozinha (restos de comida sobre a pia, um cheiro a azedo). Da cozinha passamos para uma sala onde, deitada sobre um sofá, havia uma garota bastante magra. Ela estava descalça e trajava um vestido largo, velho e feio. Ela fumava e falava bastante. O azul dos seus olhos irradiava uma promiscuidade cintilante.

Disse para Etrusco o nome da chácara onde iríamos para um festival de rock e ele afirmou que a garota nos acompanharia. Dirigimos rumo aos limites da cidade e, quando a avenida acabou e virou estrada, afundamos nas trevas. Entrei com o carro no posto de gasolina onde Etrusco trabalhava e que, devido a uma incrível coincidência, ficava bem na frente da chácara, bastava atravessar a pista.

Após estacionar o veículo debaixo de uma árvore onde cresciam algumas flores (pétalas brancas e roxas e amarelas), caminhamos – sob uma luz branca e fantasmagórica – por um posto habitado apenas por carrocerias de caminhões, esqueletos de carros, bombas de combustível (algumas imprestáveis; muito forte o cheiro de ferrugem e gasolina), gatos e cães. Já no escuro, perto do acostamento, quase caímos barranco abaixo (a menina de vestido precisou apoiar-se em Cartago). Na estrada, os carros passavam muito velozes e muito próximos e, enquanto atravessamos correndo, respirei o forte cheiro que me ganhava o rosto – era o cheiro de mato, terra e asfalto, um odor bem mais ávido do que o provara ao anoitecer, enquanto caminhava pela Praça da Catedral. Ao pular a mureta que separava as pistas, ainda olhei para o horizonte, vi as estrelas gordas, depois as luzes da cidade aos meus pés, e pensei que talvez não existam dias alegres: talvez seja possível apenas falar em dias bonitos.