Um chocolate, uma perna, a angústia

A bibliotecária gorda não desgruda do computador, atende o cliente revirando aqueles olhos cor de azeitona cuja beleza duas lentes garrafais para a miopia e o astigmatismo não ofuscam. Faça o favor de dizer, exclama, bruta, quase exigindo ao mundo que sofra com ela. Cinco quilos em cada mão, noventa quilos espalhados pelo corpo, cogita o cliente, se este monte de banha me cunha um sopapo põe-me de baixa médica, a comer sopa de cenoura e a abrir e fechar a boca a ver se endireito o maxilar. Queria reservar dois, diz o cliente. Já reservou três, responde a gorda. Gostaria de reservar também estes dois, responde o cliente. Só quando devolver dois dos outros três, responde a mulher. A gorda mira o cliente com desprezo e afirma, com os dedos a baterem freneticamente no teclado, que o seu tempo é escasso, que as chefias, entidades fantasmagóricas e cada vez mais exigentes, reclamam produtividade. Produza mais e trabalhe as mesmas horas, escarra a gorda, angustiada e aplicando murros no teclado. O telefone toca: um dos chefes pergunta como vai a produtividade e a gorda reprime a violência com uma dentada na mão. O telefone toca outra vez e outro chefe aconselha-a a dar mais de si, a não se contentar com o bom. A gorda liberta uma lágrima e pergunta ao cliente se tem um chocolate ou um pacote de açúcar, que o sofrimento a consome e dentro da sua mala não resta nem uma bolacha, nem uma migalha. Julguei que este trabalho consistia em permanecer sentada a limar as unhas, a ver vídeos de animais na internet, a pensar na preparação do jantar, confessa a funcionária, e soluça e pede um chocolate, diz que pode ser de leite, simples, sem avelãs ou passas, um mero chocolate. Não tenho, diz o cliente, e mais uma vez é o computador que paga, levando uma cabeçada que faz saltar algumas teclas. Entrei aqui magra, choraminga, cruzava as pernas e os homens esbugalhavam os olhos, ficavam de queixo caído, agora, snif, levanto-me da cadeira e rebolo até ao supermercado. A gorda estanca a onda de pieguice com um arroto. Azia, desculpa-se. O cliente regressa ao seu lugar, o escuro da biblioteca amolece-o, não tarda em adormecer e acorda com o seu próprio ronco e depois tenta focar-se na leitura mas os roncos intrometem-se outra vez e volta a acordar com o som de uma explosão de granada. Não que alguma vez tenha ouvido uma granada a explodir, pensa, mas se é como nos filmes o som é idêntico. A gorda desmaiou de fraqueza ao abrir um vídeo de um gatinho acabado de nascer. O cliente encontra-a esparramada no chão, babada e a contorcer-se como se estivesse a levar choques ou a ser exorcizada. A culpa é tua, não me trouxeste o chocolate, berra a mulher com uma voz vinda do fundo de uma caverna, uma voz medonha que arrepia e impele o cliente a correr. Salta por cima daquele monte de gordura, não tem outro modo de fugir, a sujeita caiu mesmo ao pé da porta. Ao saltar sente uma mão enorme a agarrar-lhe a perna e uma dentada, duas dentadas. E depois a perna meio comida e o corpo ligado a duas muletas.