Maria Eduarda

Henri Cartier-Bresson, México, 1964

Henri Cartier-Bresson, México, 1964

 You just get out what they put in
and they never put in enough
Love is like a bottle of gin
but a bottle of gin is not like love 
 

The Magnetic Fields, “Love is like a bottle of gin”

 

Maria Eduarda vê a sala encher-se de gente. Mendelssohn numa recôndita sala de espectáculos de uma cidade de província faz o povo chorar pontualmente às quartas-feiras à noite, independentemente da classe social. Traz ópio num dos bolsos, tem calçadas sapatilhas de pano e quando os músicos começarem a tocar, vai finalmente poder cair do Olimpo, ter o prazer de conspirar consigo mesma. O que Maria Eduarda já sabe: o seu amor é desonesto. O que Maria Eduarda ainda não aprendeu: imaginação e pensamento não são a mesma coisa, não vêm do mesmo lugar. Maria Eduarda imagina muitas coisas, mas pensa muito pouco. Maria Eduarda tem uma tendência para pensar que amor mais imaginação é igual a trabalho (o único possível). As evidências do presente sistema capitalista negam as hipóteses desta suposição, algo que Maria Eduarda tem e terá dificuldades em aceitar, independentemente da conjuntura económica. Bittersweetness não explica tudo mas é para muitos um modo de vida. Maria Eduarda só pode oferecer-se para dar alguma coisa se ninguém lhe pedir nada, de outro modo, sentir-se-ia comprometida (nos dois sentidos do termo). Maria Eduarda sai assim que o concerto acaba. Assim, do escuro da sala para o escuro da rua. Noite escura. Quando toda a gente tenta evitar a palavra, e mesmo todo o conceito de estar envolvido pela obscuridade, Maria Eduarda só quer correr para o escuro, como uma garota para o colo da mãe. Ela conhece os limites, mas o único deus disponível para amar é mesmo tudo o que é perigoso, aguçado, atraído para o centro. Tudo é melhor do que bittersweetness. Amargo e doce é  o que está entre e isso só pode acontecer no inferno. Maria Eduarda, no entanto, é honesta e confessaria que tem andado aos poucos a afogar uma cidade inteira, (quase) toda a sua família, o seu direito de voto e o seu cartão de cidadã. Maria Eduarda é honesta para não ter de sentir remorsos, essa ponta dolorosa sem o resquício de mel da ambiguidade. Mas mergulha um dedo no frasco de mel e pensa que é como âmbar, como luz, que devia ser possível tomar banho nesta cor. Maria Eduarda não aprendeu a evitar. Aos poucos esta mulher vai tornar-se a sua própria cidadania. Mas ela é como Electra. Não pode calar a boca. Se parar, vai morrer. Quer morrer? Não quer morrer? Algum amor pelo precipício é necessário para reconhecer o limite. Maria Eduarda começa a falar e reconhece logo um milhão de vozes. Nenhuma é a sua. Mas para ele podia gritar languidamente, docemente, dolorosamente. A ferida de Maria Eduarda está sempre no lugar certo, porque acerta sempre no alvo. Factos que conhecemos sobre Maria Eduarda: em tempos teve um namorado que se queixava do seu hábito de falar por metáforas. Ele olhava para ela com um ar compungido, de quem estava já no limite do tolerável, segurava-lhe delicadamente a mãozinha na sua não menos delicada mão e dizia: «Querida, não percebo nada do que dizes. Acaba com a metáfora. Simplifica.» Assim, com grande dificuldade, Maria Eduarda aprendeu a fala do insecto. O que explica como a primeira divisão do ser, para Maria Eduarda, não foi Eros, the Bittersweet. Estas coisas marcam uma mulher. Maria Eduarda admitiria que há aqui alguma falha, talvez da natureza da fissura que virá mais tarde a quebrar o vaso. Maria Eduarda pensa que o vaso só virá a partir-se mais tarde, mas da cor das uvas no outono todos os seus cacos estão já a amadurecer ao sol. Para entrar na mente, tem já de ser metáfora, que é como a refracção da luz na íris. A metáfora divide coisas. Tudo o que está dividido pode ser casa. Para ser casa, tem de estar dividido. Se o sangue não correu, nada pode crescer. Penélope preferia fazer perguntas com alusões a árvores, se interrogada sobre camas. Maria Eduarda gosta de metáforas e de camas, mas prefere evitar os enigmas. Maria Eduarda teme que nem toda a luz chegue para a manter inteira, mas não é por isso que procura o escuro. Nunca tendo estado no escuro, não é possível conhecer a alegria de cantar no escuro. Maria Eduarda não acredita em deus, mas ocasionalmente acredita em conversar. Maria Eduarda desconfia de deus pelo mesmo motivo que desconfia dos homens: Maria Eduarda é o seu labor, mas o seu labor não é Maria Eduarda. As proporções em que amor e trabalho coexistem variam de pessoa para pessoa, mas esta constatação não invalida o raciocínio de Maria Eduarda. Se Maria Eduarda não escolhesse do que se esquecer, haveria várias coisas de que não se recordaria tanto. Maria Eduarda reconhece que tem esperança mas que não consegue definir exactamente a natureza desse sentimento. Estacas apodrecem no cais com barcos amarrados nelas. Maria Eduarda não é inocente. A sua inocência começou pisada. Maria Eduarda crê que isto não é uma injustiça, que é antes sobre sangue. Maria Eduarda reconhece que a dívida contraída pelos que pisam os inocentes é da natureza da morte. Maria Eduarda com a heroína de Eça em comum tem só mesmo o nome. Maria Eduarda crê que tudo o que é dogmático mata a criatividade e pensa que só inteligência criativa importa. Mas, isto só, ia acabar por cegar o mundo, que de um modo geral é como Polifemo, ciclópico, e portanto mais ameaçado pela cegueira. Maria Eduarda trocaria quase tudo por um dia de sol, inteligência e criatividade incluídas (no fundo só as pessoas importam). Entre Alexandre, o grande, e Sócrates, o ateniense, Maria Eduarda preferiria o segundo. Preferiria ser como o segundo, porque por qualquer motivo as naturezas repetem-se ou são semelhantes. Toda a literatura só é possível por este princípio. Como traduzir a natureza de Maria Eduarda? Apesar de tanto trabalho em aparentar profundidade, o que ela mais ama está à superfície. O rapaz nas calças de ganga justas. Aquele que sorri e desaparece. Tudo começa com olhar gente na cara. Desconhece-se o motivo porque as naturezas se repetem. Mas sempre soubemos disto. Como Helena, a grega e troiana, Maria Eduarda sabe de plantas que podem dar sono e esquecimento, duas coisas altamente úteis de saber. Maria Eduarda é ao contrário de uma proporção considerável da humanidade: ela esquece-se para não perdoar. Um homem dorme tranquilamente no quarto de Maria Eduarda. Uma pedra apaga-se no pavimento e uma porta bate nas suas costas. O mundo está completo, só não é perfeito.