Eu, rudo, velo

Uma catrefada de desacertos cosida com agulha no peito, um conjunto de erros, um ano de erros, de pensamentos errados, um ano de fantasias. Escreveu, riscou, rasgou o papel e esmurrou a mesa. Cliché, pensou, clichés, só clichés: o papel, os desgostos amorosos, a chuva que batia na janela, a gabardina, o cigarro entre os dentes, o riscar do papel. A minha existência, esta solidão, o buraco negro na minha barriga. Deitou-se na banheira cheia de água e espuma e imaginou como seria se cortasse os pulsos. Recordava as palavras do psiquiatra, o imbecil que lhe aumentava a medicação, que só lhe sabia aumentar a medicação. Dois ao pequeno-almoço, três ao lanche, dois ao deitar. Era o tomavas. Tomava se quisesse. Se estivesse para isso. Não mandam em mim, eu é que sei, eu é que mando. Quem manda em ti? Mastigava as palavras do doutor. Você não tem vontade de morrer. Eu não me desejo matar mas regressar ao útero materno e à paz. Thanatos. Remascar. Sabe o que é? Psiquiatra louco, deus o salve. Thanatos. Pulsão de morte, não era bem isso. Deixou o telefone tocar, não devia ser ninguém que interessasse, ninguém por quem o seu coração batesse. O telefone tocava e tocava, vestia-se e o telefone tocava, fumava e o telefone tocava. Comprimidos que o salvassem da obsessão pelo futuro, da obsessão de ser outro, progressivamente outro. Precisava de uns comprimidos assim. Ambicionava ser uma cobra a largar a pele, uma criatura nova, apesar das rugas e dos cabelos brancos e da dificuldade, da dificuldade, que dificuldade? Esquecia-se. Não se ajoelhava sem dor. Era uma dificuldade ser ao mesmo tempo racional e animal, pensar e sentir dor aguda. Reumático fleumático sorumbático. Que significados têm estas palavras, que pomada esfregar nestes joelhos arrombados? Banha da cobra, mistelas compradas no chinês. Sentou-se num café, pediu um bagaço e uma puta, o empregado não percebeu e repetiu, quero um bagaço e uma puta. O empregado sorriu e encolheu os ombros. Mais um velho. Trouxe-lhe o bagaço. E a puta?, perguntou o velho. Na ponta do meu pé, se não se portar bem. A fineza do empregado. Comprou o jornal desportivo e perguntou ao dono de quiosque se sabia de algum sítio onde se pudesse pagar a uma puta. O dono do quiosque, conhecendo um cortiço ali pertinho, esticou o braço e afirmou duzentos metros para a direita e está lá, diga que vai da minha parte. Entrou no cortiço, pediu uma puta e em troca recebeu um estalo, que aquilo não era modo de se dirigir a uma artista do sexo. Escolheu uma senhora a seu gosto, deixou-se levar para um quarto, tirou uma pomada do casaco. Esfregue-ma nos joelhos, por favor, não aguento mais de dores. A artista obedeceu. O senhor gemeu. Que grande massagista. Para além de puta, que grande massagista. É uma pena. Uma pena ter sangue reles. Degolou a prostituta e a seguir cravou a faca no joelho e zurrou. Apareceram os seguranças que o esmurraram até o deixarem inconsciente e depois surgiram a polícia e as ambulâncias. Na prisão não existiam comprimidos. Enforcou-se. Quero uma puta. E morreu.