O inverno mais sem sol

Odeio-o, qualquer dia enfarda um balázio, assim pensei ao cumprimentar com um aceno o médico que semana sim, semana sim exige a minha presença no seu consultório a transbordar de alienados.  O meu caso difere de outros. Não sou um louco, dois ou três comprimidos para a ansiedade e outro para adormecer despachariam esta agitação. Se não me tivesse comprometido a comparecer nestas reuniões de grupo, os meus dias seriam mais tranquilos. Evitaria irritações que só a fuça do terapeuta me traz. Irritou-me ter sido tratado como uma criança por ter faltado a um punhado de sessões sem aviso prévio e irrita-me a maior parte das disparates que lhe sai da boca, até os seus silêncios me irritam. Esta criatura perguntou-me que fantasias alimento em relação a uma outra paciente chamada Maria Antonieta. Fiquei fulo. Não alimento fantasias. Fantasias, doutor, ora essa, deseja que dedique umas frases ao assunto da fantasia? O especialista retorquiu que sim, que o grupo ansiava pelos meus ensinamentos. Corei e engasguei-me, não esperava que estivessem dispostos a ouvir-me, que bastaria despejar fúria e calar-me. O mundo é uma fantasia, comecei, sem grandes certezas sobre aquilo que deveria dizer, mas disposto a não dar ao doutor o prazer de me ver falhar. Nenhum dos presentes na sala é capaz de explicar o que é o mundo, não o conhece na totalidade. Prossegui: cada um de nós possui uma visão limitada, não sabe o que é o mundo, quem são os seus pais ou os seus filhos. Não se conhece algo ou alguém por inteiro, fantasiamos sobre aquilo que nos rodeia. O doutor perguntou-me outra vez qual a minha fantasia sobre a Maria Antonieta. Poder-lhe-ia ter dito que a minha fantasia consistia em acreditar que a Maria Antonieta apreciava ser chicoteada e chicotear. Mal conheço a mulher. Não gosta de mim, é envergonhada, tem um perfume horrível e  é feia. Sei isto a seu respeito. Sei também que não se separa de um marido que a espanca. O doutor tem alguma razão: estou cheio de fantasias. Mas questiono-me se não será tudo uma fantasia, se as crenças e convicções, se a própria ciência não se resume a uma fantasia. O mundo como uma fantasia, o mundo como algo que não existe, eu como uma fantasia. Se afirmar que o mundo não existe, que não existimos, quero com isto dizer que não há possibilidade de algo ou alguém existir quando a nossa percepção é parcial e limitada. Vemos fragmentos que não constituem uma unidade. Terminei de divagar e o terapeuta esboçou um sorriso folgazão e depois largou uma valente gargalhada e perguntou-me o que sentia naquele momento. Nada, rosnei. O nada não existe na terapia, o nada por mim cuspido traz consigo nojo e desprezo. Ocorreu-me afirmar que, como lera em Freud, o paciente transfere, passados alguns meses de tratamento, sentimentos agradáveis ou hostis dos pais ou da infância para o terapeuta, e que no meu caso transferira a hostilidade para o homem que me tratava. Guardei para mim a conversa da transferência, esperando que daquela bocarra saíssem soluções para os meus problemas.