A literatura no estômago

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A editora Assírio & Alvim conta no seu catálogo com um pequeno panfleto intitulado A Literatura no Estômago, de leitura obrigatória para todos quantos se enfadem só de ouvir a expressão “meio literário”. O meio literário francês repudiado por Julien Gracq em 1950 não cheira pior do que o meio literário português de hoje. Como não é habilidade louvável, essa de distinguir níveis de podridão, antes importa assinalar que Gracq, homem seríssimo, como comprova a recusa do prémio Goncourt (em 1951), não passava por hipócrita. Queixava-se do “vedetariato do escritor” (expressão a que recorre Ernesto Sampaio no texto de apresentação) ou da incapacidade crítica da parasitagem literata instalada nos jornais, nas universidades ou nos júris dos prémios, sem desejar ascender à posição de vedeta.

O texto de Julien Gracq ensina-nos que o charlatanismo ou o carreirismo não são especificidades portuguesas. Ainda que indigne ao patriota português saber que não há nada à face da Terra que já não tenha sido feito por alguém, não parece razoável acreditar que certas singelas práticas, tais como atribuir cinco resplandecentes estrelas (para os que não sabem, a literatura resume-se às estrelas, aos adjectivos e ao gosto / não gosto) a livro dado à estampa por amigo ou amigo do amigo (“Rimbaud redivivus”), sejam originalidade lusitana. A Literatura no Estômago é uma obra sobre este tempo, sobre qualquer tempo. Quando na apresentação descreve os prémios literários como um “acúmulo de pequenas corrupções e imposturas, de invejas e conspirações ridículas, de conluios vergonhosos entre jurados, de mandarinatos e tráficos de influência”, Ernesto Sampaio está a reprovar a forma como sempre se distribuíram honrarias na literatura. Não importa que estejamos em 1950, em 1985 ou em 2015. Os prémios constituem problema num planeta habitado por mamíferos da ordem dos primatas, isto é, por seres corruptíveis e parciais. Escreve Gracq que há em literatura lugares invejáveis “que se distribuem como essas pastas ministeriais caídas nas mãos de candidatos em nada indicados para o efeito senão pelo facto de estarem sempre lá.” Os que estão sempre lá: os que saltam de apresentação em apresentação, os que têm lugar cativo nessa multiplicidade de festivais literários montados com o intuito de glorificar os que sempre lá estão, os que não desmontam, que não escrevem, nem lêem, os que só têm tempo para os eventos e para debitar  frases redundantes e ocas.

“Um ansioso, um nervoso. Aqui estou! Aqui estou – aqui estou sempre!”, brada o escritor francês que, segundo Gracq, existe muito menos na medida em que é lido do que na medida em que dele falam. O presente português é ainda mais negro. O sucesso do escritor lusitano também depende do número de vezes que aparece. Quem não se mostra, cai no esquecimento. Aparecer e opinar. Estar sempre lá. Os condimentos que conduzem à fama desviam da arte. A literatura, esta literaturazinha que não reside nos livros, que depende de um constante espectáculo montado por e para situacionistas, é uma literatura burocratizada que somente serve tarefeiros incapazes de se dedicarem à reclusão e ao silêncio ou de sacrificarem tudo em prol de duas frases bem escritas. E por isso oscila entre a retrete e o vómito. Em que escritores pensámos ao longo da leitura de A Literatura no Estômago? Nos franceses de há sessenta anos, nos portugueses de agora? Pensámos que a literatura, como quase tudo em que o ser humano toca, é um lixo.