Mendel tem de viver

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Prestigioso erudito, Jacob Mendel, alfarrabista criado por Stefan Zweig, suporta a autoridade de quem lê. Este alfarrabista mirrado, delicado, com cabelos emaranhados, cuja vaidade consiste em saber, em ser uma enciclopédia falante, não era figura incomum para um vienense nascido no século XIX. Para imberbes habituados às livrarias especializadas no best-seller e a funcionários de colete vestido, formatados para vender livros da mesma maneira que venderiam frigoríficos ou esquentadores, Mendel, o velho sentado com os olhos pregados ao papel amarelado pelos anos, com o casaco atafulhado de cadernos e folhas transbordando com nomes de clientes e títulos de livros, é, só pode ser, criatura exótica, tão fictícia quanto a Branca de Neve ou a Cinderela.

Os livros de Zweig têm o sabor de um passado artificial e pomposo em que homens refinados convivem com damas sublimes e afidalgadas. Os segredos aterradores, os desgostos amorosos, as tragédias e depressões que a todo o momento irrompem nos seus contos e novelas perdem no confronto com um pano de fundo de requinte. O mundo da educação e de bom gosto, que é o mundo perdido de Zweig, foi impecavelmente reconstruído por Wes Anderson em The Grand Budapest Hotel (2014). No concierge Gustave, interpretado por Ralph Fiennes, vislumbramos a mesma civilidade de Zweig. Numa história de Guerra não são a crueldade e a violência que sobressaem: é o hotel e Gustave, é o escritor. Quando os russos prendem Jacob Mendel, não é só um homem que deixa de frequentar um café, não é só uma livraria que fecha: o desaparecimento de Mendel representa o fim de um universo. O alfarrabista Mendel arrasta para o esquecimento a sua profissão, ou melhor, uma forma de existir. Mais ninguém dedicará o dia inteiro à leitura ou abancará no café Gluck tentando meter ordem ao caos, tentando domesticar uma ignorância mais forte, muito mais forte do que o mais bravo dos humanos.

O alfarrabista hodierno pouco tem que ver com Mendel. Vender livros não equivale a saber mais. Os livros são tratados como objectos que proporcionam felicidade e prazer, como se houvesse prazer construído sem sacrifício e dor. O charme e a caturrice de Mendel foram substituídas pela simpatia artificial, pelo computador, pela linguagem robótica de empregados nunca educados para entender o valor de um livro, não o valor de um livro raro, o valor do livro enquanto ferramenta fundamental para travar este combate inglório contra o reles, o estúpido ou o humano, no fundo. O livro virou sensual, tornou-se consensual a ideia de que é preciso agradar às massas, tornar o papel apelativo, convencer a turba de que ler é um acto social como namorar, que se regurgitará uma gargalhada a cada virar de página. Mendel morreu, tem morrido. As livrarias, mesmo as mais pequenas, existem para agradar. Para agradar até a quem quer ser escritor, como se uma livraria fosse uma telenovela que acolhe figurantes de escritores, pastiches de Luiz Pacheco. Combate-se a ignorância educando, e educar nada tem que ver com cigarradas e cervejas e risadas com leituras de poemas para o Facebook. Mendel precisa de voltar a nascer, urge redescobrir o valor dos livros e da leitura, aprender a ler desinteressadamente, por gosto ou vício, aprender a ler tudo. Ler é difícil, não faz rir. Não contrariamos este tempo detergente virando rinocerontes. Mudamos o presente envelhecendo, desejando ser velhos. Resistir, neste panorama, significa trazer de volta a boa educação, o ler em silêncio, o dormir rodeado de livros. Ser caturra em alturas em que se exige simpatia e festa. Platão continua ainda, sempre por ler, não há tempo para a superficialidade.