RELATO DE UM DIA DE AUDIÊNCIAS

I read the news today oh boy 
The Beatles, “A Day In The Life” 

 

Em meu trabalho não sou mais do que Diane: a infalível e invisível secretaria com quem o agente do FBI Dale Cooper, na série Twin Peaks, tantas vezes fala por intermédio de um gravador de voz.  

Apenas hoje me denomino Diane, talvez amanhã seja diferente, talvez eu perceba, afinal, que a comparação é imprópria, ridícula. Nasci hoje Diane enquanto escutava, do gabinete, a audiência que ocorria na sala de audiências. Entre o gabinete e a sala de audiências não há mais do que um tapume de madeira que nem sequer chega até ao teto.   

Enquanto escutava trechos da audiência a história que foi se revelando por um momento me pareceu um terreno fértil para a literatura. Todos os dias escritores para si próprios escutam algo e pensam daria um bom conto ou romance ou poema. Foi o que ocorreu hoje. Daria uma boa narrativa, pensei e, ao tentar iniciá-la, veio a denominação que abre o texto e que agora cunharei com uma singela e fácil erudição. Chamai-me Diane Ismael.  

O cenário é um tribunal do interior paulista. O tribunal de uma cidade com vinte mil habitantes. A cidade, cruzada por névoas, fica no cimo de um monte. O prédio do tribunal, cedido pela prefeitura, fica num antigo galpão de festas. O gabinete onde trabalho fica atrás do palco, no local outrora dedicado aos camarins. 

Estava de olho nessa audiência desde a semana anterior, quando a advogada da parte requerida pediu o seu adiamento devido a um suposto cerceamento do contraditório. Coube a mim a redação da decisão que manteve o ato. A maior parte do que faço é ser um escritor fantasma de despachos, decisões e sentenças. Um afazer que me colocaria como um confortável personagem na literatura contemporânea: uma ausência presente ou talvez o oposto, um dos tais mordomos invisíveis aludidos por Fernando Pessoa, com uma variante que permitiria ao escritor atribuir a mim – Diane Ismael – o seu lirismo, a sua cultura. Passo os dias como um escritor fantasma e as noites como poeta.  

Antes da audiência, circulando pelos corredores do fórum, vi duas das postulantes: duas irmãs jovens – a primogênita com idade estimada entre 25 e 30 anos; a mais jovem com não mais do que 20. A mais velha com os cabelos caindo para o castanho. A caçula com cabelos negros e com óculos de uma armação enorme que as pessoas usam nos dias de hoje, inteligentes para si próprias e para os outros igual tento ser escritor para mim mesmo e para os outros. Os olhos da mais velha, desnudos, avermelhados, apresentam uma umidade devastada de logo depois do choro.  

Antes da audiência, agora oculto na coxia, escuto as explicações da advogada das garotas supracitadas. Sãs as requeridas. Vêm de muito longe, do Rio de Janeiro. O Rio de Janeiro, ao contrário do que elas pensavam, é mais frio do que a cidade cercada de neblina. Elas vêm de avião, alugam um carro na cidade vizinha, dirigem até ao fórum, a audiência não pode se alongar, passagens compradas para regressarem ao Rio de Janeiro ainda hoje, a mais jovem – caloura – teve de ausentar-se da faculdade, a primogênita precisou pedir afastamento na repartição em que trabalha, horríveis, cansativas preparações, um processo desses, tão massacrante às suas clientes, exige que a justiça seja compreensiva, serena, conciliadora, embora desde já advirta: para cá não viemos em busca de um acordo, a posição de minhas clientes é irrevogável, não há a  menor chance delas desistirem da causa ou entregarem-se a barganhas. 

A outra parte-personagem, a requerente, é uma mulher para a qual cabe uma imagem roubada de Eugênio de Andrade: sobre o seu rosto não fora só o tempo que passara, também as cabras li pisaram fundo. Doravante, passarei a chamá-la de mulher de rosto pisoteado, variando, para tornar virtuosa a leitura, o adjetivo de parágrafo em parágrafo. Ao seu lado, um advogado calvo, olhos de um azul gélido, um tremor de doença degenerativa nos dedos sujos de nicotina. 

A primeira pessoa a ser ouvida, e cujo relato Diane Ismael levaria ao leitor sem estar dotado da necessária onisciência, tem a voz de uma mulher na casa de seus quarenta anos. Sei que é uma testemunha da mulher que teve o rosto adulterado por animais endurecidos porque as testemunhas da parte requerente são sempre as primeiras a serem ouvidas.  

Paradoxos da oralidade: os depoentes-narradores com melhor conhecimento da causa, não raro, são aqueles que guardam parentesco ou mantém um relacionamento de íntima amizade ou inimizade notória com os pleiteantes, condição que os torna suspeitos. É a primeira alegação da advogada das requeridas, a testemunha é amiga íntima da mulher massacrada, ela nega, o advogado de olhos gélidos diz que o seu testemunho é essencial para a obtenção da preciosa verdade real, a justiça pergunta acerca do grau da amizade entre a depoente e a requerida. Lança mão de exemplos: trocam confidências, uma frequenta a casa da outra? A resposta é torta: houve um tempo em que trocávamos confidências, mas nunca estive em sua casa e tampouco ela na minha, conversávamos na faculdade de filosofia, durante os intervalos, é normal as pessoas conversarem na faculdade de filosofia, foi há muito tempo, décadas, antes das jovens de agora serem nascidas.  

A partir de determinado momento todas as perguntas parecem orbitar em torno da existência de um homem morto. O homem morto, inadvertidamente, torna-se o objeto do processo-narrativa. Descubro que as jovens vindas do Rio de Janeiro são as suas filhas. Todos eles viveram no Rio de Janeiro, mas nunca ao mesmo tempo. Diane Ismael apresenta ao leitor uma vaga idéia de desterro, de afetos extraviados. 

Após o depoimento da mulher sou convocado à sala de audiência para atender a um pedido da justiça. Algo alheio ao processo. Desço os rangentes degraus que separam o palco-camarim-gabinete, no alto, da mesa da justiça no chão. A justiça põe a sua assinatura num documento escrito por mim. Movimento de caneta rápidos como os de um esgrimista. Sinto olhos em mim. São as jovens, os advogados, a mulher de rosto atropelado. Torno-me parte ativa da narrativa da audiência justo no momento em que nada acontece, mas de todo modo está operada a conexão: eu, narrador ausente, torno-me uma presença para os protagonistas do relato. Talvez mais tarde, se algum deles me encontrasse depois da audiência, talvez num hotel, bebendo drinks, algo que comumente não faço mas que a persona assumida pode fazer, talvez se algum desses protagonistas me encontrasse bebendo um martini enquanto ele ao meu lado no balcão bebe manhattans, talvez se isso acontecesse surgiria um vaga possibilidade de eu ser mais do que Diane e ainda mais do que Diane Ismael, talvez me tornasse Diane Ismael Marlowe ou Diane Ismael Spade.  

Papéis assinados. Subo novamente as escadas rangentes, rumo ao palco-coxia, desapareço. Estão todos rigorosamente instalados em seus lugares. 

Vêm as testemunhas seguintes. São ouvidos, na sequência, dois agentes funerários, duas faxineiras, uma amiga da família. Breve resumo do que captei de seus testemunhos: 

Agentes: não se lembram exatamente quem pagou pelos serviços funerários, chegaram a receber um cheque pelo trabalho, mas, por circunstâncias nebulosas, a cártula de cheque foi rasgada e o pagamento se deu com dinheiro, origem irrastreável, durante os serviços prestados tratou com a mulher de rosto devastado, mas havia outras pessoas, a mãe das garotas e um homem que não sabe exatamente identificar (penso num homem com um tapa-olhos para tornar a narrativa subitamente adequada aos padrões noir – um homem ao estilo de James Joyce, James Joyce tem a cara de quem saiu de uma narrativa policial dos anos 30, um comissário de polícia irlandês, corrupto, violento);  

Faxineiras: havia sujeira no local da morte, sangue, era impossível a qualquer uma delas fazer a limpeza sozinha – o que em mim, narrador oculto, lança a possibilidade do suicídio, ora repassada ao leitor, quem as pagou foi a mulher de rosto estéril, disse que podiam ficar com vários dos despojos do morto, roupas, muitas roupas, todas pertencentes ao cadáver, um paletó, um relógio, podiam pegar mais, havia uma fotografia do morto num porta-retrato, estava acompanhado de uma criança, uma menina, possivelmente umas das requeridas, não sabe dizer qual; 

Amiga da família: não sabe o motivo do morto ter saído do Rio de Janeiro e vir morrer na cidade sitiada pela névoa; ele e a mulher de rosto roubado tinham um relacionamento, mas o morto era um homem caprichoso, de rompantes, colérico, num dos últimos contatos que teve com ele dissera que estava cansado das pessoas egoístas, não sabe se ele se referia à mulher de rosto destruído, o corpo do morto demorou vários dias para ser encontrado, havia sangue, mas não foi suicídio, o legista certificou, mas havia muito sangue, pode haver sangue quando uma pessoa morre sozinha em casa de causas naturais, repete não saber o motivo de ele ter deixado o Rio de Janeiro, Diane Ismael Spade Marlowe torna a aludir a uma vaga idéia de desterro, fica demonstrado ao leitor que todos são estrangeiros – o morto, por ter saído do Rio de Janeiro; as filhas, por buscarem uma resposta sobre o pai longe de onde ele viveu a maior parte do tempo e onde elas próprias nasceram; a amante, conforme evidencia o seu rosto de paixões extraviadas; Diane Ismael Spade Marlowe por viver numa cidade que apenas serve como esconderijos de cadáveres insondáveis. 

Inconclusividade das narrativas contemporâneas: o relógio de ponto assinala às cinco da tarde, encerrando a minha jornada de trabalho. A vontade de ir embora ultrapassa o desejo de continuar ouvindo a audiência. Após o depoimento da amiga da família aproveito o intervalo para descer da coxias pelos degraus rangentes. Passo ao lado dos protagonistas da história. Nada acontece. A justiça acena em despedida. Uma piscadela que diz: “Adeus, escritor fantasma”. As jovens requeridas estão sérias, umas delas – a primogênita  – com uma expressão atônita. A mulher com o rosto que os corvos bicaram, fracassando em lhe roubar os olhos, desliza os dedos pelo touchscreen do smartphone. O advogado dos olhos gélidos, com um lenço, limpa o suor que lhe escorre pela testa, pigarreia, um som rouco como um arrulhar de pássaro. O prédio do tribunal fica numa rebaixada estrada vicinal e é possível ver, cinco metros acima, os caminhões e carros que passam na rodovia. A tarde é de uma áspera e plúmbea transparência. Cheiro de gasolina, de motores, de asfalto abrasado. No ponto de ônibus fico pensando na audiência, buscando um arremate. Deve estar acabando agora, penso enquanto olho os carros que vêm pela rodovia, esperando a passagem do carro alugado e ocupado por sua tripulação do Rio de Janeiro. Desponta um Toyota Corolla com toda a pinta de carro alugado, mas com um elemento estranho: pendurado no retrovisor um indígena captador de sonhos, o que não se admite, pelo menos em tese, a um carro alugado, mas para o mistério da narrativa bem que seria interessante termos um carro alugado com um captador de sonhos pendurado no espelho retrovisor. Fico imaginando o Toyota Corolla assim decorado com as duas jovens e a advogada, conduzido pelo irlandês com o tapa-olhos semelhante ao do James Joyce –  em direção ao sol poente, dédalo corrompido. Mas o carro passa e vejo, dentro dele, um casal jovem. Riem. A garota, no banco do passageiro, enrodilhando os seus dedos ao redor dos anelados cabelos do motorista como se fôssemos Ana e eu. Chega o ônibus, embarco, vou embora sem arremate para a narrativa, sem destino para os personagens que eu, Diane Ismael Spade Marlowe, mordomo invisível, escritor fantasma, poeta para si próprio e para os corações transparências que ardem, tentei inventar. No dia seguinte, ao regressar ao trabalho, fico sabendo do improvável desfecho: finda a audiência, por volta das 17h40, na porta do fórum, inadvertidamente, o advogado de olhos gélidos conversava com a mulher de rosto roubado quando cai no chão, vitima de uma síncope fatal. Estava morto antes da ambulância chegar. Ninguém o conhecia no fórum. Não se sabe se deixa mulher, filhos, trabalhos inconclusos. Caído como num poema imundo. Morto como o Coronel Kurtz. Ligo o computador, pensando e forçando o mistério, imaginando a seguinte cena e pensando daria uma boa narrativa: enfermeiros, médicos ou agentes funerários vistoriando o cadáver, a sua roupa cheirando a tabaco, marcas de nicotina nas unhas, e não encontrando nem sequer um maço de cigarro nos bolsos agora inúteis.