De Berlim a Lisboa

E nós ficávamos sentados nas folhas secas que murmuravam um pouco sob a respiração lenta da nossa espera e a respiração lenta da terra e a calma atmosfera de Outubro. 

William Faulkner, O Som e a Fúria

I (Wilmsstrasse, Berlim)

partiste e as águas correram na sua lamacenta lassidão
onde os cisnes permanecem em sua suave travessia
sugerindo aos amantes o bucolismo doado pelos canais
somente quando a chuva cai e o outono se instala na cor folheada

ou nas madrugadas de geada que em cristal brilha o inverno
aos primeiros raios da manhã e ninguém por aí caminha
na despedida não houve lenços baldeados ao vento
lágrimas se furtivas caíram foram pelos olhos dela

 – quem afinal soltava as amarras para a aventura que ajudaste
a proporcionar por solene promessa à vida – todos os caminhos e o amor
ainda estão para serem feitos antes que a morte te entre valsando

despede-te das diatribes e insónias dessa morada tão hermética
salta para o carro cheio como uma carroça com mudos e ledos cães
e segue viagem junto a ela lentos como um caracol nos himalaias do tempo

 

II (Bad Meinberg)

longe está o tempo das epopeias
tudo se move e foge da terra
só se sente a gravidade
quando o pensamento se faz corpo
ou a lama do caminho nos incita a lentidão
essa qualidade rara do amor ordenando a casa

aqui aprendemos a passagem das horas
procurámos purgar o percorrido
persistindo a ecoar no tímpano
nestas línguas de sílex prontas a embater
e incendiar o coração na iminência
de um obstáculo até o amansar da fera

composemo-nos com o mundo
desenhámos um mapa de errância
e se neste templo os nomes se renegam
por outros juntos abrimos o horizonte
da pele à fulgurância da vida
essa epopeia escrita justo ao último suspiro

shanti shanti shanti