As Aventuras do Senhor Lourenço (§20 os restos do dia, bacanal III)

(cont.)

Pensa-se que o delírio afirmativo é mais intenso do que o negativo, mas creio que é justamente o oposto.

[para os que me ignoram, eu não sou um especialista em tragédia, mas hoje teria feito um curso embebido de classicismo grego, em vez de me banhar na opacidade dos velhos conceitos, emoldurados por categorias racionais bastante duvidosas. Vejam que na história da humanidade só os gregos, querendo a perfeição, aceitaram a imperfeição. O cristão, por exemplo, no final só consente uma felicidade metafísica, ligada à realidade sem erros e acasos]

Quando a festa acabou, Lourenço iniciou o percurso em espiral até ao buraco mais negro de que há memória, uma obscuridade sem qualquer redenção, um grito surdo que desloca as costelas. Joaquim, sabia-o bem, nada podia fazer. Mas continuava ali, adivinhando a tragédia. O fiel e amedrontado Tirésias que conhecia tudo, sem os detalhes supérfluos, panfletários, dos adivinhos actuais, quase todos na política. Sabia que um fluxo de angústia iria rasgar as entranhas de Lourenço. Manuela dissera alto e bom som que “nunca mais o queria ver. Nem pintado.”

[a estupidez lógica desta expressão deve ser pesada junto com o desespero emocional que a provoca, sempre]

É verdade que Lourenço também se sentia incapaz de continuar com a Manuela, sofria sem remédio, antecipando o mais que provável abandono. Como um cão especial que no dia da adopção pressentisse que dali a um ano, ou menos, regressaria ao canil. Antes continuar lá, nunca sair de lá, que o biológico só sofre quando há termos de comparação. Mas isto não evitou que Lourenço caísse num abismo, sem que o Joaquim, ou eu (embora na altura tivesse uma valente depressão, atestada pelo médico para poder faltar à escola. Nem à festa do Plateau fui), pudesse fazer alguma coisa. A beleza e o heroísmo tinham posto Lourenço em contacto com o Universo, mas quando se é professor e se vive em Portugal é muito difícil justificar a vida. A dúvida não cai de uma só vez, desenvolve-se através de insinuações, de viés, com argumentos de treta. Do tipo: “só há adeptos para um Quinto Império numa comunidade moralmente falida”; ou, “só se espera que um rei idiota nos venha salvar numa manhã de nevoeiro quando o delírio derrotou o bom senso”. Depois, há ainda os peregrinos de Fátima a morrer no caminho, em pleno exercício de pagamento de promessas. Só um Deus muito desiludido com o seu povo permite esta ironia cruel (e não me venham com “escrever direito por linhas tortas”). Sem Deus, sem mitos explosivos, sem festa, sem esperança... E todos os dias com as colegas, sempre iguais, com os alunos, mais interessados na libido do que em Sócrates. Todos os dias a provar um pouco de sem-sentido e a cheirar o hálito nauseabundo do Joaquim. Todos os dias a imaginar a Manuela com um novo namorado, desses que conduzem Mercedes e vestem camisa azul e blazer. O pior, Lourenço não tinha ninguém com quem partilhar esta tristeza, a psicanálise está pelas horas da morte e os padres já não sabem confessar. Só professores, cada vez mais histriónicos, concentrados na aposentação e em técnicas, por vezes sofisticadas, que evitem a chatice de preparar aulas e avaliar.

[a quantidade de professores que se esganiça tem vindo a crescer exponencialmente. Os educadores, tantas vezes pais substitutos, estão doentes. Têm um cansaço auto-induzido que nada parece debelar]

Quando chegou à rua, Lourenço não olhou para as estrelas (erro de principiante ou gesto suicidário?). Cabisbaixo, desceu as escadas e, lado a lado com Joaquim, foi apanhar um táxi (a Uber ainda não tinha desbaratado a cangalhada desta seita retrógrada). Despediu-se de Joaquim – a quem Manuela tinha dito: “tu, nem para o inferno vais, vais para a sucata!” – como se estivesse a despedir-se da vida. Deu a morada ao taxista e adormeceu. Tudo correu bem até casa, um hiato de felicidade. O problema estava estacionado no dia seguinte.