Bastardo, de Victor Prado (recensão por Victor Gonçalves)

Leitura do belíssimo, intenso, subtil e inovador, livro de Victor Prado, Bastardo (Urutau, 2016).

A vocação da poesia é a de agitar a linguagem e o sentido, quebrar a esclerose dos hábitos de pensamento, quase dizer o indizível, abrir a porta ao que está para emergir, e produzir uniões à sua volta. Mas também viajar entre o superficial e o profundo. E isto Victor Prado fá-lo muito bem, surpreende a vida quotidiana no seu aparecimento, desarmada, e captura com palavras algumas das raízes que a ligam a qualquer coisa de imutável, a um sentido para lá da própria língua que agora a traz à presença. Victor Prado aponta gestos originários que desenham parte do nosso mundo, gestos toscos, porque nascentes, difíceis de fixar pelas ferramentas do poeta, que luta constantemente para apanhar fluxos de vida e plasmá-los em poemas, que terão também de ser fluxos poéticos. Às vezes confessa os impasses que se levantam, outras vezes desiste mesmo, sublimando-se numa meta-poesia que compensa a dificuldade de poetar. Esta honestidade é o verdadeiro caminho para os mais altos cumes da Arte, só quem se rasga de desespero, quem fracassa no limiar da vitória, pode subir a “6 mil pés de altura”. Por isso, não conseguimos evitar um frisson quando lemos Bastardo, não como um soluço, meio caprichoso ou meio snob, mas como um safanão que nos retira a esperança de tudo entrar nos eixos mais tarde ou mais cedo.

Enquanto leitor, procurei os meus próprios ritos de contemplação, em filigrana, sabendo que a poesia cresce sobre as ruínas dos afectos e dos sentidos que oleiam a normalidade. A poesia de Victor Prado faz guinchar as peças das engrenagens intersubjectivas, quebra consensos comunitários, apunhala as subjectividades que a abraçam à espera de consolo. A sua poesia é uma casca de banana debaixo de sapatos bem engraxados. No mínimo, deslizamos e quebramos a perna que nos ajudava, sem o sabermos, a ir geometricamente de um lado para o outro, daquele lado para aquele outro, peripatéticos assoberbados por tantas coisas inúteis.

Seguem-se algumas das inúmeras portas de entrada para Bastardo, há outras, talvez até mais importantes ou luminosas.

Renovação da língua, experimentação extrema do que se pode dizer, com o corpo. Muitas vezes o corpo, mais espinosista do que cartesiano, deste Victor.

Sexta-feira  

Eu estou nuvem pontiaguda

Cada ponta relampeja em mim

e trovoa-me

Cada relâmpago de mim

te guia pela escuridão

O dia é duro e estático,

mas

o tempo é borrachudo

entre os dentes

Teu corpo é fluido em minhas mãos.

Actualização linguística ancorada no português-brasileiro que habita nas ruas, praças e cafés, língua de conversa, às vezes fiada, íntima e pública, mais performativa do que semântica (“Onde está a palavra quando / fingimos a nós?”), produtor de sentido porque nos sacode mais do que nos guia numa linha clara de significações (“Misturando com o cheiro de querer fazer / algo inovador de transcender a linguagem / e conseguir se comunicar”, “Epifania”). O poeta elege uma estética da força em vez de uma do belo, tudo faz para reactivar a sensibilidade, envolta em ritmo e vibração. Por isso, prefere desaprender a aprender (a vertigem da primeira é substancialmente superior à da segunda), entrando novamente no mundo incógnito (mesmo desejando por vezes apanhar solidez e vida harmoniosa com as mãos), talvez só assim alcance a tão procurada “Narrativa surrealista de acontecimentos reais”. E para começar, recusa os cortes semânticos das palavras, junta-as para ver o que dizem de novo: “e apareço a ti com olhosboca, ouvidosboca / e um coraçãoestômago” (“Adendo ao Poema Confissão 2”).

Arquitetura de Percepção 2

[…]

O mundo incógnito constrói-se

através das insignificâncias

Eu desaprendi

a ser tantos

Ela aprendeu-me pela prática.

Mas o excesso cansa, conspurca, Victor Prado tem a noção exacta dos elementos linguísticos necessários aos jogos de sentido que quer compor, quase não há palavras ou sílabas a mais, a sintaxe é sóbria e respeita a oralidade, o livro tem a amplitude certa, mesmo quando por momentos atinge a incandescência. Compreende-se, pois, que diga:

 Caleidoscópio

[…]

A moça no jornal diz tantas

palavras desnecessárias

que me parece pornografia.

[…]

Leia-se também a magnífica dança de equívocos, provocada pela surdez e outras barreiras comunicacionais, no poema “Visita”, onde múltiplos significados bailam a partir do capricho soberano de cada subjectividade, de cada sujeito evanescente por falta de exterior (blindar o íntimo chama a loucura).

Victor Prado assegura uma tensão criativa entre o exterior e o interior, ora analisando, ora reflectindo. E olhando-se para fora com os demónios do interior acordados baralha-se a geometria da identidade, já que tudo é fundamentalmente pulsional, ondas de forças fulgurantes:

Precipitação

[…]

Os pássaros fizeram ninhos nos prédios

de frente e sempre há um gosto salgado

quando engulo minha saliva.

Aprecia-se o paradoxo vital (“Às salinas é inevitável / que se formem para / estancar feridas.”), porque o amor e o desejo, talvez menos deleuziano do que pretende Carla Carbatti (óptima prefaciadora) explodem, apesar de confinados em possíveis já destinados, aqui, contra outras visões suas, Victor Prado afirma-se “unipolar”.

Confissão

[…]

meu mundo não é globalizado

ele é unipolar.

e curtas infinitas são as estradas todas que levam a você

[…]

No mesmo lugar, fala dessa eterna laceração que o amor, e a falta dele, induz nos pobres implorantes que se querem unir, com o exclusivo de uma força brusca e incontrolável, frustrados pelo poder da gravitação universal:

[…]

desmantela-me e esfumaceia as coisas

teu estado ausente.

 

sou resquício de algo que era.

sem ti, rapidamente, me implodo.

Por isso, diz esse apaixonado que julgamos ser Victor Prado: “Quero-te.” Recusando os códigos de pontuação que enfatizam palavras para preservar a ignorância sobre se este querer é tão amplo que tudo fica suspenso à espera de uma resposta, ou se é já a última etapa de um desejo derrotado pela indiferença do objecto amado. Entramos, pois, no trágico civilizado, onde ninguém morre por interromper, ou ser interrompido, a linha que vai da Terra ao Céu, do Eu ao Tu, do Dentro ao Fora, hoje o trágico só baralha a velha cisão entre bem e mal. Este “Quero-te” é uma descarga de consciência, uma catarse a priori, impossível de levar à cena, mas não para espectadores, esgota-se em si mesmo, uma autofagia em lume brando. Isto porque “a vida não é mais do que poderia ser.”

Ao mesmo tempo, Victor Prado cambaleia e dá um rim (meia esperança de vida, note-se) por visões assentes nas palavras “vertigem”, “inquietação”, “profusão”, “heresia”, “abertura”, “choque”, “acaso”, “grito”... porque, di-lo logo a seguir em “Profusão de Cores”, por vezes “os amores são reais / e o corpo não está submerso / dentro de si mesmo / e essas vidas podem ser vividas / sem medo da Inquisição”, isto leva a que “a boca perde o medo de falar / os olhos de olhar / o peito de bater / a cabeça de pensar”. Multiplicidade selvagem, indomável, que cura aquilo que a sensatez e o medo tinham lenta e suavemente apodrecido, para que haja “encontros” entre “Pontos vagos / desconexos”. Daí a vontade de partir e recomeçar:

Domingo

[…]

De deixar a fila

Sair do mercado

            De recomeçar tudo

            em outro lugar

            em outro tempo.

de novo.

Mesmo quando “o destino da folha é o chão” (“Augusto”).

Há uma delicada atenção ao tricô da vida quotidiana, gestos insignificantes cheios de biografia, completos, mesmo que banais. Talvez não seja uma “beleza líquida”, mas têm a força de serem o que são. Trata-se de infiltrar a poesia com todo o tipo de pulsões do dia-a-dia, sem conjurar nada: “Não há como ajudar /alguém a carregar / uma metáfora viva / que resida em seu sangue.” (“Caleidoscópio”) Victor Prado transforma facilmente sensações banais em sensações poéticas.

Domingo 2

[…]

O senhor pesa suas batatas

            e vai embora

            (a fila aumenta)

Eu sou o próximo.

Mesmo se ela que o “olhou com olhos d’água / por um ínfimo de eternidade” lhe diz, depois de aguentar as investidas de um Casanova inoportuno, “Prefiro sonhos a concreto.” (lembramo-nos de Bernardo Soares, dos seus sonhos mais completos do que a realidade). Mas, claro, o “mercado” é eficiente, “Ele está pouco se fodendo / pros teus olhos castanhos, / menina.”

Por tudo perpassa o tempo (em todas as fissuras e continuidades do espaço), esse velho desmancha prazeres, tão necessário quanto escusado. Podemos viver a vida a arranjar calços para todas as peças assimétricas, querendo nivelar até à perfeição o que prefere dissensos e outras guerrilhas, mas:

Travessa

[…]

Tu tens alimentado um monstro:

            o tempo.

E ele engolirá o teu clamor

e a todos nós, no mais inoportuno

dos momentos.

Victor Prado convoca também uma geopolítica poética, forma de denunciar injustiças, presentes desde logo nos discursos mais escorreitos e “sérios”. Será uma poesia engajada? Pode a arte maior da palavra curar as intoxicações do mundo? Pode um “Abraço ao Terror” substituir o “odiar quem odeia” (velha dialéctica estéril), envolver de bons afectos e ritos antigos quem se extremou tanto que quer voar despedaçadamente até ao transcendente mortífero? Sabendo-se que é preciso viver as derrotas como um privilégio irrepetível, o autor afasta com as mãos em sangue “esses bruscos sopros / do descontentamento” (“Adendo ao Poema Confissão 2”).

Os leitores devem mastigar e engolir os poemas, é porventura no estômago que melhor se faz uma hermenêutica adequada à escrita de Victor Prado. Como descodifica os sistemas-língua dominantes, não se espere poder caçar facilmente o sentido com os gestos gastos da leitura compreensiva, “A construção dos significados / dos / sentidos /azul e / eles / nada além / de reflexos” (“Não-Sei-Onde 3”). E há muitas palavras indigestas, algumas provocam vómitos, aliás o poeta também se vê compelido a essa expulsão das entranhas, mais radical ainda, já que ele se quer vomitar a si próprio:

Mal-Estar 2

Eu quero vomitar-me

            vomitar-te de mim

            vomitar tudo de mim

[…]

Tanto mais que “Nada disso é teórico e é difícil não se engasgar.” (“Constante”). E mesmo o leitor Victor Prado, quando se põe em modo autofágico diz: “Não gosto nem de reler meus textos; Bate uma / vontade de rasgar a folha” (“Do cansaço I”).

“Não consigo alcançar o silêncio” (“Do cansaço II”), refere o poeta, como se procurasse a linguagem adâmica, quase não-linguagem, no preciso momento do acordar linguístico, primeiro movimento para a formação de fonemas e grafemas, desenho inicial do pré-verbal que descreve tudo sem se fragmentar ainda nas particularidades linguísticas, o livro do mundo inteiro numa arqui-escritura sem identidade, a plenitude do sentido. Trata-se de enunciar quase fora da enunciação, sem mediações, comunicação directa, não como em Alberto Caeiro entre o humano e a natureza, mas entre o poeta e a esplendor das coisas ainda incodificadas, sem cultura. Noutros casos, uma rede subterrânea cria ligações significativas capazes de constituir um discurso poético perfeitamente inteligível. É também por isso, creio, que Victor Prado nos confessa a sua dificuldade em escrever: “Não consigo escrever. / Não mais como / antes. Como eu costumava fazer.” (“Do cansaço I”). Esta revelação negativa, inscrita mais ou menos sanguinamente em todos os poetas, assinala que a quantidade pletórica de palavras criou uma cacofonia insuperável, o uso despudorado da linguagem fê-la funcionar ao contrário. O esclarecimento só pode agora estar no silêncio.

Apesar disto, Victor Prado é um artífice das palavras, da sua forja saem exemplares únicos, belos, mesmo quando foram fabricados para distorcer o apolíneo, em geral criteriosamente precisos, apesar da sua força ampla e destemida de esboços livres. Ser forjador de palavras responsabiliza-o por amar um exército de leitores, que ele não quer submissos. É isso que se cumpre exemplarmente em Bastardo