Morto está o cavaleiro

maxresdefault.jpg

O ciúme de Geraldo despontou com uma ligeira irritação, uma implicância contra as idas da esposa ao ginásio, contra a eternidade por ela despendida na banheira a espargir loções e em frente ao espelho a borrar-se de maquiagem. Medrou a irritação quando ela se dedicou a citar amigas, filósofas de café munidas de verdades absolutas sobre a felicidade. Torcia o nariz, não lhe cheirava, andava ali coisa. Em conversas antigamente irrelevantes passou a detectar incómodos sinais de mentira e de traição. Canções ligeiramente diferentes das habituais a tocar no quarto deixavam-no a suspirar. Se  ela demorasse meia-hora a mais no trabalho, visualizava-a numa diversão louca com os amigalhaços, talvez até a deixar-se apalpar e sabia-se lá mais o quê. O telemóvel dela tocava. Ela nunca largava o maldito telemóvel, noite e dia nas mensagens, a rir com a face pintada alumiada pelo ecrã. Geraldo engolia em seco, cerrava os olhos, abstinha-se de gritarias nocturnas, mas ruminava, encolhia-se debaixo dos lençóis e praticamente não dormia. Um pesadelo funesto, no qual a dondoca surgia em cenas indecentes, cenas de puxar o vómito, deixou-o colado uma noite inteira ao maço de tabaco e a uma chávena de café, inválido sequer para acrescentar uma frase ao livro que andava a escrever. Sempre com dificuldade em encontrar editora para os seus originais, enegrecido pelo anonimato e por uma pitada de mediocridade, Geraldo era escritor fracassado, escrevia pouco, e o pouco que escrevia apenas com os olhos de dois, três amigos se cruzava, e sem grande entusiasmo.  Abandonava a ideia de ser escritor.  A realidade era dura. Pesava-lhe não ser outra pessoa. Os dias passavam com o bicho a contemplar cada vez mais a solidão, o sofrimento eterno e a imagem de uma mulher que, talvez sentindo-lhe asco, nem um beijo na boca lhe autorizava. Quis escrever sobre a sua situação, sobre a mulher, a cadela. Desistiu antes do início. Perseguiu a mulher. Uma, mil manhãs atrás dela. Seguia-a de táxi, via-a entrar e sair de cafés, a lançar beijos e adeuses a um e outro macho, e chorava por tristeza ou por não saber reagir de outra maneira. O taxista que o guiava, um careca com sotaque russo pouco apreciador de cenas melodramáticas, um dia trancou as portas do carro, palmilhou milhas, tantas milhas, e parou num sítio deserto no qual unicamente existiam um burro e um balde de água. “O burro, um irmão espiritual, é teu. A água é para te hidratares pelo caminho.” Com estas proféticas palavras foi Geraldo largado junto ao novo amigo. Durante a árdua jornada de regresso, feita metade a pé, outra metade montado no burro, Geraldo meditou sobre a sua vida, concluiu que era fútil sofrer pela fama, carpir pelo que não lhe pertencia, angustiar-se por situações pequenas. A partir de Marte não se avistava a mulher a dançar lambadas. Dormiu uma noite encostado ao burro. Escreveu mentalmente a melhor das história e retornou à superfície, determinado a ser um escritor a sério,  a viver como um homem digno. Mudou de cidade.  Apagou a mulher, suburbana, vã, da memória. Comprou uma palhota no campo e escreveu, atulhou o baú de manuscritos, e tratou do burro até morrer, sem ter voltado a pensar em mulheres e em fama. Se isto tivesse sido verdade. Se Geraldo tivesse conhecido o russo. Se o burro. Se não tivesse engolido tantos calmantes. Que pena, amar.