Quatro poemas de Anne Sexton
/Selecção e tradução de Maria Sousa
De ALL MY PRETTY ONES (1962)
Jovem
Há mil portas atrás 
quando eu era uma miúda solitária 
numa casa grande com quatro 
garagens e era verão 
desde sempre, 
da noite deitada na relva, 
com os trevos a enrugarem-se por cima de mim 
as estrelas sábias deitadas sobre mim, 
a janela da minha mãe um funil 
de calor amarelo a escorrer 
a janela do meu pai, meia fechada, 
um olho onde adormecidos passavam, 
e as tábuas da casa 
eram macias e brancas como a cera 
e provavelmente um milhão de folhas 
velejavam nos seus caules estranhos 
enquanto os grilos faziam tiquetaque em uníssono 
e eu, no meu corpo recém estreado, 
que ainda não era o de uma mulher, 
dizia às estrelas as minhas perguntas 
e pensava que Deus poderia mesmo ver 
o calor e a luz pintada, 
cotovelos, joelhos, sonhos, boa noite. 
Donas de Casa
Algumas mulheres casam-se com casas. 
É outro tipo de pele, tem um coração, 
uma boca, um fígado e movimento de entranhas. 
As paredes são permanentes e cor-de-rosa. 
Vejam como ela está ajoelhada o dia todo, 
lavando-se fielmente de alto a baixo 
Os homens entram à força, atraídos como Jonas 
para as suas mães carnudas. 
Uma mulher é a sua própria mãe 
e isso é o mais importante. 
De LIVE OR DIE (1966)
Para o ano dos loucos 
uma oração 
Ó Maria, frágil mãe, 
ouve-me, ouve-me agora 
embora eu desconheça as tuas palavras. 
O rosário negro com o seu Cristo de prata 
permanece por benzer na minha mão 
porque eu sou a descrente. 
Cada conta redonda e dura entre 
os meus dedos, 
um pequeno anjo preto. 
Ó Maria concede-me esta graça, 
esta passagem, 
embora eu seja feia, 
submersa no meu próprio passado 
e na minha própria loucura. 
Embora haja cadeiras 
eu estendo-me no chão. 
Apenas as minhas mãos estão vivas, 
a tocar contas, 
palavra a palavra, eu tropeço. 
Uma iniciada, sinto a tua boca tocar a minha. 
Conto contas como ondas, 
a baterem sobre mim, 
estou doente com o seus números, 
doente, doente, no calor do verão 
e a janela por cima de mim 
é a minha única ouvinte, o meu ser estranho 
ela é uma larga recebedora, uma mitigadora. 
A dadora de respiração 
ela murmura, 
exalando o seu largo pulmão como um peixe enorme. 
Cada vez mais perto 
vem a hora da minha morte, 
enquanto eu rearranjo a minha cara, volta a crescer, 
cresce por desenvolver e com o cabelo liso. 
Tudo isto é morte. 
Na memória há um beco estreito chamado morte 
E eu movo-me nele 
como se fosse água . 
O meu corpo não tem utilidade. 
Jaz, enrolado como um cão na carpete. 
Desistiu. 
Não há palavras aqui senão as meio aprendidas, 
o Avé Maria e o cheia de graça. 
Agora entrei no ano sem palavras. 
Anoto a entrada estranha e a voltagem certa. 
Sem palavras elas existem. 
sem palavras podemos tocar no pão 
e ser-nos-á entregue pão 
sem som. 
Ó Maria, terna médica 
vem com pós e ervas 
Porque eu estou no centro. 
É muito pequeno e o ar é cinzento 
como numa casa de máquinas. 
Dão-me vinho como dão leite a uma criança. 
É apresentado num copo delicado com um bojo redondo e uma borda fina. 
O vinho tem cor de breu, bafiento e secreto. 
O copo ergue-se sozinho em direcção à minha boca 
E eu reparo nisto e percebo isto 
Apenas porque aconteceu. 
Tenho este medo de tossir 
mas não falo, 
um medo de chuva, do cavaleiro 
que cavalga para a minha boca. 
O copo inclina-se sozinho 
E eu estou em chamas. 
Vejo dois finos fios a 
queimarem-me o queixo. 
Fui cortada em dois. 
Ó Maria, abre as tuas pálpebras. 
Estou no domínio do silêncio, 
o reino dos loucos e dos adormecidos. 
Há sangue aqui 
E eu comi-o 
Ó mãe do ventre 
vim apenas pelo sangue? 
Ó pequena mãe, 
estou na minha própria mente. 
Estou trancada na casa errada. 
De THE DEATH NOTEBOOKS (1974)
Roupas
Veste uma camisa limpa antes de morrer, disseram alguns russos. 
Por favor, nada com baba, nódoas de ovo, sangue 
suor, esperma. 
Queres-me limpa, Deus, 
por isso vou tentar obedecer. 
O chapéu com que me casei, 
servirá? 
Branco, largo com um pequeno bouquet de flores falsas. 
É antiquado, com tanto estilo como um percevejo, 
mas fica bem morrer em algo nostálgico. 
E vou levar 
a minha bata de pintar 
lavada vezes sem conta, claro 
manchada com cada cozinha amarela que pintei. 
Deus, não te importas que eu leve todas as minhas cozinhas? 
Elas contêm o riso da família e a sopa. 
Como soutien 
(precisamos de o mencionar?) 
O preto acolchoado que irritava o meu amante 
quando eu o despia. 
Dizia “para onde foi tudo?” 
E levarei 
a saia de grávida do meu nono mês 
uma janela para a barriga do amor 
que deixou cada bebé sair como uma maçã, 
as águas a rebentar no restaurante, 
fazendo uma casa barulhenta onde eu gostaria de morrer. 
Como roupa interior escolherei algodão branco, 
as cuecas da minha infância, 
pois era uma máxima da minha mãe 
que as meninas boas apenas usavam algodão branco. 
Se a minha mãe tivesse vivido para o ver 
teria posto um cartaz de “Procura-se” nos correios 
para as pretas, vermelhas, azuis que eu usei. 
No entanto, seria perfeitamente agradável para mim 
morrer como uma boa menina 
a cheirar a Clorox e a Duz. 
Tendo dezasseis-anos-nas-cuecas 
morreria cheia de perguntas.

 
                     
             
      
      
    
  
  
    
    
     
      
      
    
  
  
    
    
     
      
      
    
  
  
    
    
     
      
      
    
  
  
    
    
     
      
      
    
  
  
    
    
     
      
      
    
  
  
    
    
     
      
      
    
  
  
    
    
     
                 
                 
                 
                