Da minha impossibilidade actual de desfrutar de um livro

“O sujeito entretém-se a galar as mulheres que deslizam e abancam ao seu lado ou à sua frente no metro, como se todas fossem perfeitas e apetecíveis, e quando uma bela dama corresponde aos olhares e exibe sinais de querer falar e lança beijocas ao ar, ele baixa a cabeça, a sentir-se o mais feio de todos, a relembrar a dentição amarelecida, as cicatrizes na testa, as olheiras, a pança mal disfarçada por camisa xl e os fungos que nem latas de spray, gotas, pó de talco, lixívia e o que mais se imaginar conseguem desentranhar das unhas.” 


Este rascunho mal amanhado, dedicado a um pertinente tema como o das trocas de sorrisos no metro nova-iorquino, brotou-me em Fevereiro deste ano num caderno devido a um terrível hábito, que já em Portugal me trazia grandes desgostos, de começar a ler obras literárias dadas à estampa por autores rotulados pela imprensa periódica como o novo grande talento mundial desde Kafka ou Tolstói. Sucede-me quase sempre o mesmo ao entrar na Strand, livraria situada em Union Square, Manhattan: folheio livros num canto escuro em que turistas não passam, compro um que me agrade e encafuo-me no metro na esperança de, pelo menos durante a meia-hora seguinte, me perder nos prazeres que só a boa literatura oferece, mas desato a tropeçar nos parágrafos, chego à página sete a desfalecer, desmaio na décima página, chego ao terceiro capítulo depois de ter saltado meia-dúzia de páginas, e aquilo que parecia a minha salvação acaba na estante, junto a tantos outros Kafkas redivivos. Esquecido o livro na mochila, atento na senhora de mini-saia que tira selfies, no cintilante grupo de empresários forrados com notas de dólar, no hispânico a dormir uma soneca encoberto por boné que faz sombra até ao bigode, na velhota que jura ao telefone nunca ter conhecido alguém que fizesse tantas vezes sexo por dia quanto a inquilina do andar de cima. 

    Penso no livro The Lonely City - Adventures in the Art of Being Alone, escrito por Olivia Laing, autora dotada de um talento narrativo que lhe permite dar uma perninha em qualquer género literário, com particular incidência no ensaístico, como um exemplo do que me parece errado em muito do que se publica actualmente. Esta é uma obra centrada em experiências de isolamento e incomunicabilidade vivenciadas por artistas em Nova Iorque, cidade propícia a depressões e outros abatimentos da alma. Temos Andy Warhol, pálido, anti-social, complexado por ter nascido no seio de uma família de imigrantes que foi parar a Pittsburgh, desde cedo a temer não falar tão bem inglês quanto outros americanos, a fugir ao diálogo. Também neste livro entra Valerie Solanas, criatura solitária, incapaz de expressar os seus sentimentos através de palavras (apesar de ser escritora), que em 1968 tentou matar Andy Warhol a tiro. Já nos trabalhos do pintor e fotógrafo David Wojnarowics, outro artista sobre o qual Laing disserta, o sexo abunda por ser essa uma forma de escapar ao confinamento solitário, à “prison of the self”. Estes e outros exemplos dados por Laing poderiam resultar em algo que escapasse à passagem do tempo, se este livro não sofresse de uma moda americana que retira interesse e substância a tantos trabalhos pelas máquinas de marketing considerados imperdíveis. A moda de querer ser tudo, de abarcar os temas todos sem passar da superfície, de exibir uma inteligência que não passa de estilo (estilo mainstream), de espargir pós-modernidade, de triturar relatos pessoais, ficção, história, filosofia ou considerações sobre arte.

Sobra da leitura deste e de outros livros uma certa desilusão: a leitura não foi tão prazenteira quanto poderia, não aprendi o que gostaria. Um livro aparentemente profundo gira em torno de nada e perde-se em redundantes umbiguismos. Talvez se a autora se tivesse restringido a temas como a depressão ou a solidão, se tivesse aproveitado esses temas para nos ensinar mais sobre personalidades como as referidas. Se tivesse sido menos New Yorker. Menos trendy. Menos cosmopolita. Se tivesse sido menos Master of Fine Arts in Creative Writing. Mas nada. Este tipo de literatura padece de uma doença que se confunde com talento. Falamos de uma doença nascida nas melhores universidades, que se manifesta em brilhantes textos, repletos de estruturas. Unanimemente elogiados pela mais liberal imprensa americana, premiados pelas mais catedráticas criaturas, estes textos a custo escondem o martelo que tantas vezes na academia faz as vezes de caneta. Os cursos de escrita criativa, os workshops, as palestras nas livrarias, nos colleges e o marketing descarado não evitam o desaparecimento do leitor num sonolento oceano de mecanizadas fórmulas literárias, disfarçadas de criatividade, composto por peixes Kushner, Eggers, Egan, Smith, entre tantos outros génios contemporâneos que, felizmente, a eternidade esquecerá. 

Um dos infortúnios trazidos às nossas vidas ocidentais pelos não-lugares, como lhes chamou Marc Augé,  foi a transformação do nosso mundo num vasto centro comercial ou loja de souvenirs, que tanto existe em Paris como em Lisboa ou na Califórnia. Seguimos a regra do Burger King e temos aeroportos, restaurantes, livrarias e livros iguais em toda a parte. Na Bertrand, na Barnes & Noble ou na Strand, os livros cheiram a novo, a limpo. Vislumbramos os 50 exemplares do mesmo livro empilhados como bananas à espera de expositor, os postais da cidade, os gadgets, os moleskines, os quadros, as frases catchy, e tantas outras bodegas que confundem uma livraria com um supermercado ou com um Starbucks. E embora não sejam lugares físicos, encaro muitos dos livros que leio como espaços banais, comparáveis a uma cadeia de hambúrgueres, insossos, entediantes, frágeis para quem não faz parte daquela esfera literária que se auto-engrandece sem medir a fraca qualidade do que premeia. 

Os génios têm culpa. Por cada Beckett teremos mil pequenos nonsensical writers. Por cada Lobo Antunes teremos mil sofredores de tasca. Por cada David Foster Wallace, um académico genial, capaz de nos deixar a sofrer por lagostas ou de compilar informação de lista telefónica nas mesmas páginas  em que descrevia a infelicidade de gente à procura de uma fuga da existência, teremos mil Daves e Kates a moer-nos o juízo. O legado dos grandes criadores não é apenas a genialidade - é uma multidão de seguidores que frequentou a universidade, que se entreteve com workshops, com mestrados de escrita criativa, com teorias que afastam a literatura daquilo que foi com Faulkner ou Hemingway ou Henry Miller ou Proust - uma literatura que não dependia de qualquer estrutura, de qualquer método ou Ted Talk. Assim, depois da existência de génios como Wallace, ficam as gerações de meninos encantados com a multidisciplinaridade, com o urbano, com o ser tudo, com as grandes questões filosóficas e artísticas - meninos que ao abraçarem tudo prescindem da maturação, da reflexão e de um ligeiro, talvez enorme, sofrimento que rouba fama e tempo, mas que acrescenta qualidade e profundidade ao que se escreve. 

"Arthur Rimbaud in New York (Coney Island)" / Estate of David Wojnarowicz. "

"Arthur Rimbaud in New York (Coney Island)" / Estate of David Wojnarowicz. "