Fraenkel

Eduard Fraenkel em Corpus Christi, Oxford

Eduard Fraenkel em Corpus Christi, Oxford

1

Sr.ª Professora
é verdade que Fraenkel
costumava assediar as alunas?
e a Sr.ª Professora Doutora
Maria Helena da Rocha Pereira
franziu os olhos
e perguntou
o Eduard ou o Hermann?
como quem pergunta
o senhor é idiota todos os dias
ou só quando está embriagado?

2

como aquelas figuras em Homero
que aparecem apenas
para serem despachadas
em meia-dúzia de versos
mas que antes
têm de merecer o privilégio
de uma morte ilustre
contando como o avô
anos antes
tinha caçado
um javali metafísico
ou da glória que o pai tinha trazido
à sua aldeia
nas guerras de boxe e xadrez
ele firmou os pés
e começou a desenrolar o pergaminho
da sua obsessão
que começara no texto de Ésquilo
mas que alastrara
para a edição comentada
de Eduard Fraenkel
um monumento filológico
com quase duas mil páginas
que com um humor perverso
não hesita em corrigir o Latim
dos editores que o precederam

 3

mas a verdadeira questão
era
mais difícil de formular

poderíamos tentar reunir
o maior número possível de fenómenos
que rodeiam a vida de um homem
filho de judeus berlinenses
o pai um comerciante de vinhos
a mãe herdeira de uma família de editores
Eduard começou por estudar direito
mas cedo mudou de área
e foi discípulo
de classicistas lendários
primeiro de Wilamowitz em Berlim
e depois de Friedrich Leo em Göttingen
inicialmente um Latinista
publicou importantes estudos sobre Plauto
e mais tarde sobre Horácio
o seu interesse
parecia voltar-se cada vez mais para os Gregos
quando em 1933
perdeu o lugar na faculdade
nas purgas nazis
e fugiu para Inglaterra
e se refugiou em Oxford
onde viria a morrer
a 5 de Fevereiro de 1970
mas este exercício
falharia em cartografar
a natureza de um homem
que submeteu a alma
a uma distensão e especialização tamanhas

 4

sim
eu estava lá
quando o
Agamémnon saiu
disse Rocha Pereira
o rosto menos severo
quase um sorriso
ele estava
tão alegre
foi como se um peso
lhe saísse de cima
o peso
de três enormes calhamaços
e riu
como sabe
dedicou-o à mulher
Ruth
eu jantei em casa deles
boa gente
um homem bem-parecido
não leve a mal que lhe diga
tocava muito bem guitarra
apesar do braço paralisado
boa gente
isso dos apalpanços
era bem sabido
a mim nunca me apalpou
talvez por achar
que não valia a pena
havia outras histórias
inclusive um caso
com a Iris Murdoch
ela foi aluna dele
nos seminários do
Agamémnon
os alunos lutavam por um lugar
nos seminários dele
verdade ou não
ele foi durante muito tempo
um mentor para ela
mas era óbvio
para quem os conhecesse
que ele e Ruth
se amavam profundamente
quando se conheceram
tiveram
de namorar às escondidas
os pais dela
não o viam com bons olhos
era uma família muito abastada
ambicionavam mais para a filha
do que um mero classicista
e depois o final
horas depois
de Ruth morrer
até nisso um classicista
na banheira
os pulsos abertos
bem
boa gente
disse Rocha Pereira
com os olhos a brilhar
boa gente
mas já o estou a aborrecer
com as minhas histórias
disse Rocha Pereira
e com um gesto brusco
estendeu
a sua mão
minúscula e firme