A Minha Guerra e Um Saco de Caramelos

 

No dia anterior tinha-me dito que enquanto há vida
Tudo é possível, eu sorri-lhe, não o quis contrariar,
O destino está tantas vezes traçado, tão traçado,
Mas é preciso um treino angustiante que nos permita ler
As evidências dos últimos dias, faz-se o possível, apesar
De tudo indicar a inutilidade de cada gesto, mais um dia,
Com sorte, nunca sorte, um esforço tremendo,
Trapezismo sobre o vazio mais absoluto, estas mãos,
Que agora escrevem para se tornarem eternas, sorrio,
Para não me contrariar, ao menos mais um dia
Deu tempo à companheira, ao amigo, à mãe,
Um cartão onde se lê, és amado, fala em amizade,
Porque não encontrei outro, mas é amor, amo-te,
Tenta desculpar-se num desespero evidente,
Ele pede-me para lhe retirar a máscara do BiPAP,
Que diferença fariam uns segundo, um mergulho,
Um alívio, ser um pouco todo e independente,
Um pouco de água, a voz sem o filtro do plástico
E do sopro salvador, ilumina-se um sorriso, quase histérico,
És tu novamente, e a saturação do oxigénio a descer,
A máscara em punho e o dedo no botão, dou-lhes mais
Uns segundos, que diferença faz, mais uma hora,
Amanhã não estará aqui, pelo menos não em consciência,
A própria companheira compreende, que bom ver-te agora,
Mesmo que seja a última vez, a máscara quebra a ilusão,
Eles demoram-se uns momentos, trocam palavras possíveis,
Dou-lhes espaço, partem para sempre, pouco mais lhe posso
Administrar, seja o que for, será apenas adiar o inevitável,
Adormece depois de morfina e oxicodona, para aliviar
A dor da fractura patológica, a dor da partida eminente,
Depois de aumentar a dobutamina, levar a noradrenalina ao máximo,
Aumentar o oxigénio para sessenta e cinco, setenta,
As pressões do BiPAP, a furosemida para uma grama diária,
Confirmar o aumento galopante do lactato, o saco de urina vazio,
A acidez do sangue a abandonar o sete vírgula, quase um seis,
Adiantar a dose de cortisona, pensar que se calhar efedrina,
A sistólica a sessenta e oito, ele cinquenta e poucos,
Mais uma dose de albumina humana, fico ali em pé, a olhar
Para a fragilidade da vida, para a miserável condição humana,
Para o cartão e ao lado o saco de caramelos fechado que ninguém
Irá abrir, e não consigo compreender o que leva certos
Reis, a quem foi dado por homens o poder possível aos homens,
De aumentar a angústia, a dor, tornar ainda mais miserável
A condição humana, quando basta acordar e ter o azar
De uma célula mutante se multiplicar, eu ali em pé,
Vendo que contra a morte podemos muito pouco, mesmo
Dando tudo o que temos disponível para quem só tem um destino,
Contudo, continuam-se a usar todos os recursos pela morte,
Um saco de caramelos, um saco de caramelos e eu tão pequeno.

 

28.02.2022

Turku