cidade

uma história que começasse por encher o coração, como a limonada que faço e que enche o seu copo. uma história ácida, açucarada, de um perdido turvo de leve alaranjado, uma história que deixa sementes na peneira dos sentidos. mas é que não sei ser assim, ser a que conta ou inventa histórias prazerosas, povoa o clima, os cômodos de uma vida pretendida. sei suas mãos, seus dedos sobre a mesa e isso bastaria a uma boa contadora de histórias. disso tira-se toda a sorte de belezas e ternuras. não comigo. sou faminta e tiro dali apenas as mensagens que me falam, que a mim comunicam. suas mãos sobre uma mesa comum. penso nos seus pés, invento a diversão debaixo do tampo. olho seus dedos, porque não consigo ver sua boca, seu rosto, suas gordas sobrancelhas. o copo dentro duma mão, a outra que espanta uma mosca da nuca. você está aqui, como os limões que uso, está. espremido, tencionado, suando, suas ideias na pia, suas cascas no lixo, suas raízes longe de mim. por tanto tempo espremi limões para o seu refresco de fim de dia. por tantas horas você segurou o copo, bebeu a coisa, mastigou o gelo, cuspiu uma ou outra semente que escapou à rede de segurança. tantas décadas e meu ponto de observação marcado na geladeira, como se minha sombra ficasse ali, guardando o meu lugar de te ver. de onde toda essa tristeza, todo esse mal estar que foi derrubando seu rosto e, com ele, minha visão, meus olhos, minha argúcia? a cozinha que já foi lugar de festa, de abraços repentinos, de guerras com panos de prato e bagas de uva, de gatos e cachorros no assalto às migalhas. a vizinhança que se foi, a que chegou e não demonstra vida, a não ser numa palmada e no choro da criança arteira, na retirada do lixo, nas brigas mornas e quase inaudíveis. a cidade mudou, nosso bairro se foi, os animais morreram. sobramos nós e alguma moldura de família, de casa, de plano e de plano de felicidade. nossos filhos estão por aí, em alguma estação de trem entre o que deixamos de ser e o que seríamos. nos mecanismos do cotidiano, continuamos caminhantes. uns deselegantes vestidos de seda que ainda me seguram em pé, vestidos engomados na mesma substância misteriosa que mantém seu corpo indo e vindo do trabalho na prefeitura da cidade que um dia foi nossa iluminada esperança. não há mais tempo para as luzes, para os cafezinhos com conhaque nas lanchonetes, para a pipoca gordurosa da única sala de cinema. o quartzo acabou. a cidade dos cristais místicos acabou. foi tirada da terra a eternidade substancial da região. no entanto, ficamos. talvez seja mesmo isso e essa é a contenção de higiene abrindo e cicatrizando uma vala enorme bem no meio dos nossos rostos. de tanto ficar, de tanto ver partir, estamos presos numa rede feita dos fios da descrença, esse inseto sorrateiro que se alimenta da proteína de tudo o que desiste das nossas chances, o miolo do pão, o queijo na ratoeira que nunca, uns fios de cabelo na escova, um pensamento sujo, um gesto de carinho que se desmonta antes de ser. as noites chegam e só nos damos conta em razão da música das últimas cigarras. sem a certeza absoluta de estar à cama, fechamos os olhos, cada um por si, perdidos, distanciados, separados do sumo, como as sementes na peneira, como numa história violenta, tumultuada e, por tumulto, esperançosa.