Uma viagem pela Europa, hotéis (parte II)

A cabana de Martim Heidegger em Todtnauberg

Durante a nossa viagem pela Europa alugámos oito quartos de hotel. Preferimos os hotéis tradicionais a outras formas de alojamento locais, sobretudo quando pernoitar apenas uma ou duas vezes.

Habitar efemeramente um espaço diferente da nossa casa tem, para nós, uma dimensão predominantemente funcionalista, distanciamo-nos das funções classistas ou fetichistas. Um quarto de hotel deve responder ao objetivo para o qual foi alugado, no nosso caso para uma boa noite de sono e um pequeno-almoço decente.

Há uns anos, as reservas e alugueres eram difíceis e os resultados imprevisíveis. Fora do circuito das agências de viagens (e mesmo nestas havia muita aldrabice), era bastante complicado saber que hotéis tinham quartos disponíveis, a que preços e com que qualidade (daí, parece-me, a catalogação por estrelas e a importância do nome da cadeia). Muitas vezes, só no local, seguindo a sinalética de rua, se conseguia obter a informação devida. Era ainda necessário interpretar certos indícios para projetar a qualidade do quarto e do pequeno-almoço (aspecto da recepção, simpatia dos empregados, estilo dos hóspedes, características do edifício, localização…) ou visitar o alojamento, quando autorizavam. Havia também alguma informação de viajantes anteriores, mas o boca-a-boca tem riscos: raramente se diz mal das próprias férias, seria assumir o fracasso numa área que quase só combina com felicidade.

Hoje, é possível escolher os hotéis guiando-nos pelas avaliações de hóspedes anteriores e, claro, imagens e outras informações fornecidas pelos próprios. A plataforma que mais utilizamos, creio que domina o mercado, é bastante fiável, mesmo para neófitos. Avaliações de diferentes parâmetros (limpeza, simpatia, conforto, pequeno-almoço, localização…) de um a dez e uma geral na mesma escala. Uma comunidade de utentes que após um certo número de avaliações define a qualidade do hotel. Normalmente não escolhemos abaixo do oito (muito bom), mas as avaliações, como nas escolas e universidades, estão inflacionadas.

O pior de todos, em Brive, França. Tudo era mau e feio, excepto o estacionamento. Pintado de roxo e cinzento oficina de automóveis, o fundo das portas (saída e WC) apodrecidas, a carpete com manchas de inundações, a recepcionista que não falava inglês e me corrigiu, mal, o meu francês, um pequeno-almoço de caserna. Quando entramos no quarto senti um pequeno arrepio, parecia um cenário à Twin Peaks. Dir-me-ão que foi mal escolhido e barato. Estava um pouco abaixo do limiar dos oito pontos na avaliação, mas foi o hotel mais caro de todos. Explicação? Brive está longe de ser uma cidade turística, como disse na primeira parte deste relato de viagem, encontrámos vários restaurantes fechados num sábado à noite para descanso do pessoal. Não há uma economia da emulação e da competição turística que lhe dê um certo nível de competência. Também não há um gosto individual e colectivo pela hospitalidade, algo habitual, aliás, nos franceses.

Hotel de Turim

O melhor de todos, em Burgos, Espanha (Crisol Almirante Bonifaz). Tudo previsível, competente, profissional, limpo. Apesar de ficar numa rua central e movimentada, nem um pequeno ruído no quarto. WC com utensílios de higiene pessoal em bambu, uma nota personalizada de boas-vindas, alguns chocolates e duas garrafas de água (não de plástico) de oferta. O melhor pequeno-almoço de todos, normalmente não se cuida muito dos vegetarianos. Próximo deste, o de Pádua, centralíssimo, cheio de peregrinos (Hotel Casa Del Pellegrino), na recepção foram extremamente amáveis e prestáveis. No pequeno-almoço havia uma grande diversidade de compotas caseiras e vários tipos de leite. Tratam bem os vegetarianos. E foi o mais económico de todos, quase metade do preço do de Brive. Antes de Pádua, o Best Quality Hotel Dock Milano, impecáveis na recepção, com a maravilhosa sonoridade da língua italiana, a jovialidade de uma cultura há muito habituada a receber estrangeiros, um edifício dos meados do século xx com um chão magnífico de calçada fina romana, a dois passos, sempre debaixo de arcadas, do centro. Tem, além disso, muito perto uma geladaria com um extraordinário gelado de pistáchio (este fruto é já referido no À la recherche du temps perdu, Du côté de chez Swann, de Proust como o suprassumo dos sabores em gelados), melhor e mais barato do que o da Avenida de Roma em Lisboa.

Mas o mais sedutor foi o Hotel Zum Schiff de Freiburg im Breisgau, na Alemanha. Martim Heidegger foi professor (e reitor durante pouco tempo, em plena ascensão do movimento nazi) nesta cidade e a sua famosa cabana (aldeia de Todtnauberg), na qual terá escrito uma parte importante da sua obra, fica a cerca de seis horas a pé (era assim que o filósofo, mais antissemita do que se pensou até há pouco, gostava de se deslocar, através da floresta negra). Não fizemos a romaria filosófica, estávamos sem fé metafísica. Quando chegámos à recepção pareceu-me ver um americano com ar de quem iria repetir os passos do autor de Sein und Zeit. As informações que pediu, as respostas que obteve, o ar de peregrinação filosófica (peregrinação extrema, colonizados pela filosofia analítica, os americanos que lêem Heidegger devem ser excêntricos no pensar e academicamente suicidas), o livro de 1000 páginas que não largava da mão esquerda, tudo remetia para um missionário pronto a resgatar o «pensar autêntico» das garras de técnica. Perceber a amabilidade da recepcionista com aquele hóspede surpreendeu-nos e, claro, descansou-nos. Confesso que não tínhamos associado a simpatia a Freiburg. E foi assim que desfizemos o preconceito, alimentado também pelas fotografias do hotel, quando reservámos, em cima da hora, o quarto (aparenta ser muito anos 80). Simpáticos, competentes, óptimo pequeno-almoço, edifício com alma, um quarto enorme, vista para a floresta (pela qual talvez caminhasse Heidegger), cama confortável, almofadas perfeitas (o critério das almofadas pode bastar para definir a qualidade de um hotel, não há hotéis bons com más almofadas, e o inverso também é verdade). Mais uma nota, a ficha de avaliação em papel colocada na mesa do quarto tinha os campos habituais, conforto, limpeza, simpatia, pequeno-almoço…, mas havia uma novidade: informative. Isto diz muito da cultura alemã (simplifico ao uniformizá-la). Foi assim, também contra Heidegger, que derrotaram uma metafísica bolorenta mais preocupada com o aprofundamento, quase delirante, da subjetividade do que com a descrição e a resolução dos problemas da vida colectiva. Às vezes penso que o nosso lirismo barroco e o falatório para-discursivo do futebolês deviam ser esmagados a golpes de martelo informative. Não para alimentar as máquinas do lucro, predadoras incansáveis, mas para tornar os humanos melhores (continuo aristotélico, apesar de Nietzsche).

Hotel de Pádua

Mais duas ou três notas. Primeira, sempre que nos instalámos num hotel verificamos as saídas de emergência, construímos um esquema de autoproteção. Segunda, quando pesquisámos os hotéis pusemos dois critérios fixos: estacionamento e pequeno-almoço. Mas só nos de Brive e de Freiburg é que não pagámos pelo parqueamento fornecido pelo hotel. Nos outros, ou despendemos cerca de 15% do preço da estadia para estacionar, ou, como em Burgos, Turim e Pádua, tivemos de estacionar na via pública, sem muitos problemas contudo. Finalmente, depois de reservar é bom tentar esclarecer por correio electrónico os aspectos menos claros, ficamos mais informados (regressa o informative) e mostramos que não nos podem comer por lorpas, mas cuidado o excesso de prudência costuma transformar-se em desconfiança («cinismo ingénuo», nos termos da psicologia) e isso é mau para a literatura e a vida.