Porque choramos e rimos perante a mesma coisa

Regresso a casa e ponho-me à procura de um livro de Montaigne que a Penguin editou há uns anos. É uma colecção breve cujo título traduzido para português significa “Porque choramos e rimos perante a mesma coisa.” Regressei a pensar nesse ensaio que li há muito tempo, porque há uns dias, sentada num café em Siracusa, tive vontade de chorar e rir perante a mesma coisa, esse humor que supõe um rasgão no centro do que quer que seja essa entidade a que chamo “eu,” já sem grandes ilusões sobre coerência total, que é de resto o ponto do ensaio de Montaigne. Ele fala de como não é hipocrisia querer chorar e rir ao mesmo tempo, como isso é por vezes um movimento que acompanha as emoções da incoerência, resposta perante o absurdo que se nos apresenta e faz emergir uma implícita resolução que se torna força constitutiva.

Uma manhã em Siracusa, em cima da mesa comum da cafeteria onde ia todos os dias tomar o pequeno-almoço estavam os jornais do dia. A princípio ver os jornais desportivos fez-me rir, é uma coisa de países do sul. Em Inglaterra isso não existe. Os jornais diários têm uma secção de desporto e é tudo. Na pilha procuro o jornal diário, um qualquer, e os meus olhos batem num título de duas linhas na primeira página que diz algo como: “Papa declara que armas e contracepção são uma ameaça à vida humana.” É então que eu me lembro de Montaigne e começo a ter vontade de chorar e rir perante a mesma coisa. Envio uma fotografia da página a um amigo italiano (por sinal o amigo que trocou de lugar no universo comigo e está agora sentado a olhar para os meus gatos em Oxford) e ele responde num minuto dizendo: “não acredito que haja esperança para o meu país,” o seu desânimo ecoando no meu. Eu, entretanto, começo a ler a notícia que de facto confirma o que sugere o título, o Papa Francisco equipara armas e contracepção, declara-as ambas uma ameaça à natalidade, um problema que de resto é particularmente pronunciado em Itália, que tem uma taxa de natalidade severamente decrescente. Este octagenário, teólogo máximo, teve a estranha revelação de que estes dois objectos, armas e contraceptivos, têm afinal o mesmo propósito e em certo sentido servem-se do mesmo meio para o obter: o propósito é ameaçar a vida humana, coincidindo nesse fim por meio da obstrução da existência humana. As armas alcançam sucesso destruindo vidas humanas já existentes, a contracepção as potenciais. Eu peço um sumo de laranja. Eu sei agora que sou uma ameaça à vida humana, no mesmo sentido em que um soldado russo ou israelita munido de uma metralhadora o pode ser. Para o absurdo funcionar, para termos vontade de chorar e rir ao mesmo tempo, perante a mesma coisa, por vezes, há estruturas lógicas que têm de desaparecer. As armas que o papa Franciso tem em mente não são nomeadas, pelo menos na notícia, em relação com os soldados que as empunham, os mercenários e os assassinos que pegam nelas, mas apenas “armas,” quem está a pensar na Ucrânia e na Palestina sou eu. E quando penso na Ucrânia e na Palestina reparo que não consigo elencar que indústrias exactamente e em que países mais fornecem armas a estes conflictos. Sei que os Estados Unidos fornecem armas a Israel, o que deixa este país numa situação absurda: por um lado, estão a fornecer as armas que estão há meses a matar indiscriminadamente civis palestinianos, por outro, continuam a enviar ajuda humanitária. Sabemos que a Rússia tem a sua própria indústria de armamento. Penso nestas coisas e tenho vontade de chorar e rir ao mesmo tempo. Para a contracepção poder ser equiparada a uma arma o que tem de desaparecer é de outra ordem e são na verdade duas coisas que têm de ser apagadas. A primeira, para mim, por causa do meu preconceito de género,  é o direito das mulheres à sua auto-determinação. Podemos ignorar aqui que, por exemplo, há mulheres que simplesmente não tomam contraceptivos para efeitos anti-concepcionais, que isso não é para elas um argumento relevante. Mas talvez valha a pena notar que o Papa, que nasceu com uma pilinha, nunca vai saber o que é acordar de manhã, cego de dores no abdómen, mal se conseguindo mexer, tomar um par de analgésicos que no fundo não servem para nada, e arrastar-se até ao emprego, tentando permanecer funcional. Ou ir para a escola e tentar fazer uma aula de educação física nesse estado, uma quantidade de sofrimento bastante considerável que um comprimido tomado todos os dias, ou um dispositivo intrauterino, pode resolver facilmente. Certo que não são apenas mulheres que tomam contraceptivos, mas estatisticamente sabemos que os meios mais eficazes de contracepção são consumidos por elas, não por eles, sabemos que historicamente os contraceptivos foram fundamentais na emancipação das mulheres e, já agora, na subida da qualidade de vida globalmente. O que me leva à segunda coisa que tem de desaparecer para o Papa poder fazer esta afirmação: o seu respeito pelo direito à escolha de cada um, algo que alguém que se vê diante de uma arma deixa normalmente de ter. O discurso do papa é também ele potencialmente uma arma, deseja impedir a liberdade de escolha da parte da população que quer tomar contraceptivos em paz, sem matar ninguém, eventualmente para não matar ninguém. Daqui podíamos até falar de mulheres para quem chegar a tomar a um contraceptivo é um absoluto privilégio, eventualmente uma maneira de garantir a melhor sobrevivência de filhos já existentes. Existem depois todas as questões de outra ordem que nada têm a ver com esta e são tão variadas quanto os motivos pelos quais as mulheres resolvem (ou não) tomar contraceptivos – uma decisão que há algumas décadas elas deixaram de ter de justificar seja perante quem for. Um facto permanece. Para mim, perante esta afirmação, eu vejo a misoginia cruzar-se com a narrativa do meu pequeno-almoço: são as mulheres quem tem de desaparecer da equação, com a sua auto-determinação, com a sua liberdade de escolha, para um contraceptivo ser igual a uma arma, para um homem poder dizer que um contraceptivo é uma arma. Ou talvez o problema sejam mulheres armadas de contraceptivos, por oposição a homens armados de espingardas. Mas é engraçado notar a eventual correspondência entre os idiotas que gostam de brandir armas para matar os filhos dos outros e aqueles que pensam que tomar um contraceptivo é um gesto equivalente, que pode ser comparado logicamente. A minha vontade de chorar e rir ao mesmo tempo diz-me que são normalmente pessoas de espírito semelhante que gostam de brandir armas e obliterar a liberdade dos outros. Por algum efeito irónico, tenho um bloqueio qualquer que não me permite fazer uma distinção moral entre estas duas categorias de pessoas: as que brandem armas, as que gostariam de manter controlo sobre escolhas dos outros, tomadas em consciência, liberdade e legalidade. Ambos não costumam ter grande empatia por aquilo que é a trajectória de uma vida humana no sentido em que a vida, plenamente falando, naquele ponto de crise onde Montaigne a isola, no maravilhamento de ela poder ocorrer numa torção que acolhe um sentimento e o seu contrário, não existe sem escolha, não começa sem tolerância e um profundo cuidado, quase veneração, perante o direito dos outros de escolherem como querem que seja a trajectória das suas vidas. Paradoxalmente, de modo quase reaccionário, digo que haveria menos idiotas agarrados a armas se estivéssemos mais próximos desse ideal de ter algum respeito e empatia pelas vidas dos outros, as que já existem, não as imaginárias.