Um poema do novo livro de Patrícia Baltazar, «Catapulta»

CARTA DE MAREAR

Não há corpo igual. Não há cheiro nenhum no mundo que colmate o meu vício por ti. Não há tragédia igual. Drama incorruptível.
O tamanho de tudo, encaixe perfeito, a dimensão do conjunto e a distância entre opostos.
O que aporto eu? Flores. Mecanismos para deliciar. Sorrisos repartidos ao pôr-da-lua. Fazer ver a leveza do mundo, afinal. São flores que eu aporto. A minha caneta, o meu lápis, a tua vida no meu caderno-para-sempre. Votos de mar a vida inteira.
Leva-me. Está a ficar escuro. Tenho tudo tão pertinho.
Há uma pornografia íntima nisto nosso. Dá água na boca.
Segura-me. Musa.
Porque a pele.
Porque o rosto e as minhas mãos descendo.
Porque nós.
Não fiques, mas não vás. Avião outra vez. Porque tu.
O meu anel está a arder.
Tudo tão muito e eu a tremer como sempre.
A minha esperança é azul. Propagação. Níveis do Inferno.
Flores de Jacarandá no chão.
Gostava de me decifrar. Perdi o relógio, perdi a caneta, não perdi o anel. Ele arde-me.
Era isso! A faísca. No caos, a faísca. Tu. Não esquecer.
Fazer ver a leveza da tempestade. Até doerem os dedos. Até chorar. Até rir. Até dormir descansada no teu peito azul.
Comer-te.
Orgasmo.
Não esquecer.


Catapulta, o mais recente livro de Patrícia Baltazar e da do lado esquerdo será apresentado no dia 27 de Setembro, pelas 18.00 no bar A Barraca, em Lisboa. A apresentação fica a cargo de Miguel Martins. Fica a sugestão.

 

Nec spe nec metu

Mas enfim, acabou a era dos gigantes: porque tudo nesta vida, e mais depressa o que é grande, acaba e passa.

P.e António Vieira

 

O que retenho de tudo isto é violentíssimo.  Impulso por impulso, são as horas que acabam e passam. Gigantes. A cada tempo, impulsivamente, acabam e passam.
Isto não é sobre deus. Seria, possivelmente, sobre a paz. Mas creio que nem um nem outro existem já para se visitarem. Isto é violentíssimo para quem há já algum tempo deixou cair o rio que tinha no cabelo, deixou cair as mãos cujas linhas foram entregues a uma velhinha tardia. Aqui, agora, tudo é mar e respiração - eis os meus pés! É violentíssimo.
Eu tive confiança no tempo. Confiei na água, nas flores (mesmo nas desertas), tive confiança no oráculo das nuvens, no arco-íris.  Confiei a gigantes a minha cria (-ção) com a inocência de uma criança. E não era nada disto. Nada disto. O que se pretendia, o que eu pretendia, era uma era de caminhos longos sem buracos de guerra, oceanos em barda, caminhos livres de crianças abatidas a tiro e dadas a comer a cães sarnentos. Mães sujas com o sangue dos filhos. Isto são as fezes de deus e da paz todas juntas. É violentíssimo.
Mas eu também sei ser gigante; vou comer do céu, beber galáxias inteiras e soprar ventos de cheiro lindo por este universo todo. Espalhar, com umas mãos enormes, brilhos cósmicos por cima da terra e de cada criança nela. Os gigantes não acabaram nem passaram. O gigante sou eu. E estou aqui, pronta para ensinar a deus e à paz o que são e para que servem. Como se um sonho. Como se um ponto brilhante, e ser livre. Como se assim.
Como se para tudo isto houvesse uma só violentíssima magia.