A pele da Europa revisitada das alturas

i

A superfície do mar vista do avião
parece a tua pele ampliada à lupa 

não minto se digo que desta altitude
está seco ao meu olhar o corpo do Atlântico  

como chora um corpo líquido
senão cuspindo pedras conchas
corpos para quem foram inúteis
as tábuas que também dão à costa 

ii

a abóbada da europa abate-se
sobre os mares e oceano
e sobre as espáduas do Atlas
enfraquecido agora pelos aromas das flores
que em terra se abrem atrozes 

não sobra quase espaço
entre a terra e o mar
e os corpos não param
de dar à costa devolvidos
por terem defeito
ou não agradarem aos compradores
(escolher a opção que melhor se aplica) 

tudo se repete e a cada novo rapto
se soma mais uma gota de violência

Parque Eduardo VII

Sentado num banco, a dominar a cidade,
deveria acalentar meus sonhos de grandeza,
ver-me rei do que avisto, até à Arrábida; em vez disso,
sinto cobrir-me um manto, um peso estranho
que traz algum alívio à raiva e à teima dos últimos dias,
nos quais abri e folheei obras curiosas
sobre como fabricar uma bomba nuclear
(coisa cara e que, confesso, não será o que me falta
para a vida, agora, pendente das estatísticas;
com a curva de estupidez a subir, vertiginosa).
Estes enormes obeliscos encimados por louros,
hão-de estar alinhados com o cais das colunas,
numa grandiosa perspectiva à la française,
(Isto suponho, não estudei o assunto),
o que sei é que andam escavadoras lá em baixo
a revolver o Tejo e a transformar o cais, talvez,
numa marina, num polo de atracção acrescida
para as hordas de turistas que (pois é, desapareceram)
hão-de voltar cheias de apetite. Deus não permita.
Entre os enormes falos coroados, havia, no Natal,
um presépio gigante, não sei se ainda há,
o que há, aqui na minha frente, é uma asserção em pedra
do pénis em ruína do João Cutileiro, bem escorado,
e que terá causado escândalo e polémica,
sem que eu me tenha comovido um pêlo.
Porque nem todos os pénis chegam a falo,
e o pobre amontoado, junto aos quatro obeliscos
altíssimos, perde à partida a luta pelo símbolo
e nem chega a ser insulto, para não falar em arte.
Que me perdoem os que amam a obra, eu amo
Lisboa e, pelos vistos, finjo honrá-la, falando.
Já vejo que a tarde não me cura totalmente
a raiva que crescia. Não me vale o peso do manto inverso,
faltam-me uns olhos melhores, dois faróis
que me lessem por dentro até eu adormecer.

17/11/2020

As nêsperas

Ainda não tinha visto a Primavera cá de casa.
No terraço ao lado há uma grande nespereira.
Lembro-me de comer nêsperas e gostar
do sabor meio doce, meio azedo,
e de a minha mãe dizer que as nêsperas
faziam nódoas.
Há certas pessoas
que são como as nêsperas que comemos –
não sabemos porque falamos nelas
se há toda uma vasta botânica.

O perfil de Ana Freitas Reis está disponível aqui.

não venço o medo diurno

não venço o medo diurno
o qual carrego pelas avenidas 
em flores, pelas pontes silenciosas

chamo as coisas que conheço
pelos seus próprios nomes:
cadeiras, tábuas, despedidas
desespero

as que não conheço, ou que
estão para mim como o poente
amarelo, crio fisionomias:
alto, esguio, imponente
miúdo

à noite, não tenho medo
bebo como um animal sadio
pronto para sair e não 

voltar.

beco

tréguas nenhumas
ao que fazemos deixamos de fazer
pois tudo se entende vão 
como parece no mero
engenho planeado de querer
prontificar a redoma bonita 
intacta para apreciação
em justa
medida justamente
sem razão pra existir
e depois ainda a sentençazinha 
com ares de sapiência 
máxima de quem viveu
antes de nós

hoje 
qualquer
porta se fecha
assim sem janela 
que valha uma aberta que seja
eis o imbróglio destes dias
a espada face à parede
a aflição em apneia lá metida pelo meio
e resquícios estilhaçados da dignidade:
o disfarce a caraça do sorriso
sempre na urgência de esconder
como se um prego forte sobre a maré cheia
pudesse fixar a fundo essa humanidade