Estado de Natureza

Diamantino andava cada vez mais melancólico e nem os passeios ao canavial em frente da azenha o alegravam. De cada vez que pensava em Fernanda sentia uma dor alastrar pelo peito até à garganta, deixando-lhe a voz embargada.

No dia seguinte ao jantar na Associação, passou no bairro das Vivendas várias vezes na esperança de a ver. Diamantino sabia que mais dia, menos dia, ela iria apanhar o comboio e regressar à cidade, e por isso achava que não teria muitas oportunidades para lhe dizer o quanto a admirava.

Na quarta vez em que arrastava o passo junto ao muro da casa da Médica, depois de outros tantos bagaços, viu Fernanda pendurar roupa no estendal do alpendre e acenou-lhe da rua. Fernanda respondeu-lhe e Diamantino aproximou-se do portão e entrou sem esperar que ela o convidasse.

Era uma tarde muito quente e Fernanda vestia apenas uma camisola larga, o que o fazia suar ainda mais ao vê-la. Diamantino tentava secar as mãos nas calças e pensava: “Se ela me deixasse ficar com umas cuecas para recordação já ficava satisfeito.”

Quando se dirigiu a ela sentiu a voz falhar:

- Hoje sonhei contigo, Fernanda.

- A sério?

- Morra já aqui fulminado.

- Isso é… tão lindo, Diamantino.

- Sonhei que fazíamos o amor…

- Nunca pensei que pudesses sonhar uma coisa dessas.

- Bom, na verdade foi um sonho acordado, mas estava cheio de sono, por isso acho que pode contar.

- Acho que sim, mas o que interessa é que agora já estás acordado, não é?

- O que eu gostava era de voltar a ter o mesmo sonho esta noite. Mas se calhar não tenho sorte.

- Pois, se calhar não, como sabes os sonhos nem sempre se repetem.

- Tu podias dar-me uma ajuda.

- Pois, pois, mas isso é que não pode ser.

- Podias deixar-me ver-te as mamas…

- E porquê uma coisa dessas?

- Disseram-me que tinhas umas mamas bem boas.

- Quem foi que te disse tal coisa?

- Dizem por aí, eu só ouvi, não sei quem foi.

- É pena, já agora gostava de saber.

- Se me esforçar acho que posso lembrar-me de quem foi.

Propôs Diamantino enquanto se aproximava de Fernanda e lhe barrava o caminho.

- Sabes uma coisa, acho que afinal não é assim tão importante. Podes deixar-me passar? Tenho coisas a fazer lá dentro.

- Mas qual é o problema, não somos amigos?

- Os amigos não andam a mostrar as mamas uns aos outros. Se eu te pedisse para me mostrares o rabo no meio da rua mostravas?

- Mostrava, queres ver?

- Não era isso que eu queria dizer.

- Ó Fernanda, assim eu não percebo. Então, se a igreja já não manda e cada um faz o que quer, porque é que não deixas?

- Ó Diamantino, tu não tens mais nada que fazer?

- Ando tão consumido que nem consigo trabalhar.

- Pois, mas eu não tenho nada a ver com isso.

- Mas eu olho para ti e só vejo curvas, vou para os montes e é só curvas, até fico agoniado com tantas curvas.

Fernanda olhava para ele enquanto segurava a bacia da roupa, como se fosse um escudo de defesa, mas Diamantino não desistia:

- Só de pensar que a ti não te custava nada. Afinal qual é o problema? Não é nada de especial, posso ficar a ver de longe, se quiseres. Vá lá, Fernanda, ninguém fica a saber, é só levantar a camisola. Não podias fazer isso por mim? Temos andado tão divertidos esta semana, era uma coisa que podias fazer pela nossa amizade.

- Pois podia, mas não me apetece.

- Mas a mim apetece-me pelos dois, queres ver?

- Não, não quero ver nada, só quero passar. Diamantino, tu não tens vergonha do que estás a fazer?

- Daqui a nada começas a falar em pecados outra vez. O que eu acho é que és uma mal-agradecida, confesso que não estava à espera.

- Tenho pena, Diamantino, eu também não estava à espera de uma desfeita destas. Afinal parece que nos enganámos os dois.

- Cada vez percebo menos, palavra de honra. Então fez-se a Revolução para quê? Agora vós também vos armais em esquisitas? Uma pessoa aqui a fazer-vos as vontades todas, a tratar-vos bem, a levar-vos nas palminhas, sempre simpáticos, a deixar os nossos afazeres para vos satisfazer, a abrir as portas das nossas casas e a oferecer o melhor vinho e a melhor comida e todas as coisas típicas e agora, na hora da verdade, é assim? É que para ti nem era nada de especial e para mim significava muito. Nem imaginas, desde que te vi ao pé da igreja no primeiro dia que ando aqui cheio de vontade e tu nada. Ouve lá, tu se calhar não gostas de homens? É isso, não é? Ouvi dizer que isso era moda nas cidades. Mas olha que eu trato-te bem, tu sabes que eu sei preparar muito bem uma mulher, é uma coisa natural para mim e nunca tenho pressas. Mas se tu não queres aproveitar, lá se vai a oportunidade, mas olha que acho mal. Até estou a sentir-me desprezado e isso é um sentimento negativo, acho que estás a criar mau ambiente sem necessidade.

- Se não me deixas passar chamo o Gabriel.

- Podíamos chegar a um acordo, tu mostravas-me as mamas daí e eu não passava daqui.

- Eu vou fazer de conta que isto não aconteceu e vou andando para dentro, está bem?

Disse Fernanda enquanto tentava ver se havia saída do outro lado da casa.

- Fernanda, se quiseres posso ajudar-te a subir o muro e depois vamos ali para trás de umas giestas.

- Olha lá, mas tu estás bom da cabeça? Por que é que não vais pedir à tua irmã?

- Agora estás a ser cruel, Fernanda. Tu não sabes que a minha irmã morreu quando tinha cinco anos?

Fernanda ficou sem saber o que dizer durante alguns segundos antes de retomar a ofensiva, mas Diamantino não a deixava passar:

- Não queres reconsiderar? Eu acho que se devem dar sempre mais duas ou três hipóteses a uma mulher até ela ter a certeza de que não quer.

- Eu tenho a certeza absoluta, Diamantino.

Disse Fernanda depois de conseguir passar por ele e entrar em casa, mas Diamantino continuou atrás dela:

- Pensa lá bem. Ainda vais a tempo, vê lá, se queres vamos até lá abaixo à ribeira, ouvi dizer que gostavas de te meter na água sem roupa.

Diamantino ainda ficou a olhar para a porta que se acabava de fechar à sua frente e antes de sair lembrou-se da roupa que Fernanda tinha estendido e ficou a olhar para algumas cuecas, sem saber ao certo qual delas escolher.

In Mil Novecentos e Setenta e Cinco, Tiago Patrício, Gradiva, Lisboa, 2014, p.300-4