a importância do pequeno-almoço 
 
If workers’ labor produces all the wealth in society, who then produces
the worker? Put another way: What kinds of processes enable the worker to
arrive at the doors of her place of work every day so that she can produce the
wealth of society? What role did breakfast play in her work-readiness?
Tithi Bhattacharya, Introduction: Mapping Social Reproduction Theory
 
 qualquer mulher sabe que
é preciso manter as tropas:
passar a ferro as fardas parir herdeiros esfregar o chão / de joelhos o sarro sai melhor
quem mais poderá explicar às crianças a ausência  
do soldado do empregado fabril do político fervoroso que põe o pão na mesa [1]
se o sexo é político, imagina as lides da casa
lavar à mão as manchas de vinho / sémen / sangue
fazer a cama quando vazia
reunir no prato os nutrientes necessários
para a capitalização do pai adúltero
   
 depois de fazer o pequeno-almoço
 as mulheres-âncora atracadas à enseada
 assistem em silêncio à partida das armadas de dom joão, o primeiro / o anterior / o pai deste
 para que agora - isto não é novo -
 pelo menos quinze mil machos sigam audazes.
 a ideia é a de sempre:  
 queimar florestas / rapinar minas / estuprar indígenas / baptizar terras que já tinham nome
 reproduzir hospícios e quartos forrados a papel de parede amarelo  
 enterrar a semente bem funda no colo do útero
   
 e aos poucos gerar novos e delicados manequins de mãos calejadas
 deixar que a geração anterior ensine a seguinte a fazer o café  
 (atenção. não se faz café de qualquer maneira, é preciso formar uma pirâmide de pó, não deixar que a
água toque no funil, não ligar de imediato na temperatura máxima, dar-lhe o tempo certo de ebulição, mas continuando,)
vertê-lo quente na chávena de manhã  
sementar esse pão vaporoso na mesa milagrosamente limpa  
colher fruta fresca valorizar a louça lavada
não regressar nunca
à sodoma abandonada
porque nessa  
o café já esfriou
quem faz o pequeno-almoço
sabe de tudo isto
retorna a casa só e as mãos
sempre invisíveis
costuram dores como contas de rosário  
nos dentes e figos abertos no lugar dos lábios
 só quem come o pequeno-almoço
tem a boca demasiado cheia
para perceber o fundamental:
    
é que sem elas  
o mundo não chegaria sequer
ao meio dia.
1 	(“pôr o pão na mesa” é: a) produzi-lo de raiz, a partir da massa mãe (a massa mãe leva entre 5 a 7 dias a desenvolver-se com água engarrafada a 27-28 graus e outros ingredientes que encontram no google); b) poder comprá-lo e depositá-lo num cesto em cima da mesa; c) uma frase utilizada para iniciar a sondagem que descobrirá finalmente “quantos pequenos-almoços preparou o teu pai enquanto crescias?”)
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 diário
 
 1.
perguntei-lhe
se me queria beijar
beijos pequenos
pelo meu corpo inteiro
povoar a minha pele de amor
ele respondeu
quero rebentar-te toda 
 
 2.
antes de ingerir 
a primeira dose de atmosfera
devíamos ler a bula
sobre os efeitos secundários
mais frequentes:
10 em 10 utilizadores
sofrerão de náuseas
fraqueza e indigestão
um ou dois tipos de abuso
(por vezes simultaneamente)
 normalmente segue-se a falta de libido
e alguma solidão asfixiante
(consulte o seu médico
se esta se prolongar
após a morte)
1 em cada 1000 utilizadores
poderá eventualmente
vir a ser feliz
mas não foi ainda possível
comprovar esses efeitos.
 
 3.
 ela disse que como voluntária 
ensinava as crianças a nadar
eu pensei para mim
que não existe tal coisa
e que na melhor das hipóteses
só aprendemos a afogar-nos
mais devagar
 dei-lhe os parabéns
pelo gesto de generosidade
ela explicou que na verdade
odeia fazê-lo
justificou-se com o ruído infernal
que ecoa na piscina:
most of the times
i just tell them  
to shut the fuck up. 
 4.
 nada nisso me pareceu estranho 
lembrei-me só que a diferença
entre os demónios a gritar
na minha cabeça
e a piscina pública
em hora de ponta
é que na vida
não nos obrigam a andar de touca
em contrapartida
é mais difícil nadar
fora de água
 5.
ele sonhou que um amante antigo
o salvava debaixo de água
(sendo mais precisa,
salvavam-se mutuamente)
mas nunca chegavam a vir à tona
 enquanto me descrevia
o tom premonitório deste sonho
eu pensava nos versos
escritos no dia anterior
as piscinas e crianças o eco sísifo 
estamos todos ligados
pela arquitectura sinuosa
dos líquidos,  
pela engenharia estrutural
dos amores
 
(meu querido,
há naufrágios que nos salvam).
 6.
de manhã chorei de raiva
ao sair de casa vi um cartaz:
“oficina para preencher espaços vazios”
não quis acreditar
(o meu inconsciente
passeava na rua)
mas segui decidida
em direcção ao mcdonald’s
ao jantar fiz um bolo
vegan e sem lactose
mas com muitas velas
pus muitas velas nesse bolo
de alguma maneira não conseguia
parar de acrescentar fogo
como se fosse necessário que
alguma coisa ardesse
de repente
tinha-me tornado mestra
em como preencher espaços vazios 
mentira
continuo a aprender.
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scenes from a long lost may
 
 we live in a perpetually burning building, and what we must save from it, all the time, is love.  
Tennessee Williams
  
ainda tirei uma ou duas selfies
à procura de mim
por tempo demais perguntei-me
onde está a minha libido
para onde foram os meus orgasmos
 não tinhas o direito
e aquela casa-miniatura
que não me deixaste trazer:
eu queria a casa dentro da casa
tu querias a casa fora da casa
vai sujar, disseste
e percebi naquele momento
que as nossas moradas
não coincidiam
recortes
a boca de um homem
aos urros
aos gritos aos murros
a boca aberta
de um homem sempre
fechado
(quem te ensinou
a gritar tão bem?)
a gata nos teus braços
provavelmente o meu presépio favorito
será dela que sentirás mais saudades
porque os animais
são inocentes mas eu não
e depois teve o limão
que no dia seguinte
estava podre
assim de repente
achei bonito
fotografei-o
uma espécie de nan goldin
fruta ferida
(não esquecer a papaia  
o figo a maçã)
e depois faz todo o sentido,
não é:
a última foto do álbum
tem um rapaz muito magro acabado de acordar
de alguma forma surpreso por existir
por algum motivo cuidadoso com o que poderá dizer agora
veste uma t-shirt amarela com o imperativo: 
“dê sangue”.