Quatro poemas de Katerina Angheláki-Rooke em tradução de Manuel Resende

Katerina Angheláki-Rooke (Atenas, 1939) é uma das mais importantes poetas gregas da contemporaneidade. Educada nos Estados Unidos, é uma tradutora profissional do russo, do inglês e do francês, e divide o seu tempo entre Atenas e a ilha de Égina, onde tem uma mítica casa. A sua obra pertence à tradição de Seferis e Elytis mas a sua reinvenção dos mitos gregos é idiossincrática, talvez menos reverencial do que a destes dois, e profundamente ligada ao presente e a uma necessidade de examinar e questionar a condição feminina, e da própria Grécia contemporânea, tomando muitas vezes como ponto de partida esse referente. Em inglês recomendaríamos as antologias The Scattered Papers of Penelope  (Graywolf Press, 2008) e Beings and Things on Their Own (BOA Editions, 1994). É com alegria suficiente para tornar menos cinzenta qualquer segunda-feira que deixamos aqui alguns poemas seus na tradução de Manuel Resende, tradutor, entre outros de Kavafis e Elytis.

Adolescência 1

Com a adolescência o eu divide-se em dois:
um brinca e o outro apieda-se.
O tempo florista embrulha‑nos em papel transparente,
e, embora esta atenção só se dirija ao nosso florescimento,
não o sabemos e tomámo-la como caso nosso pessoal.
Inverno em Atenas em 1953,
as lajes do passeio nadam na lama,
as luzes vermelhas do cine Orphéas amesquinham o mais informe dos corpos.
Tens saudades do futuro como se fosse passado,
ao saíres do teatro Koun, o homem das castanhas à esquina,
a mamã com o casaco novo,
tudo te leva às lágrimas; a inconsolável Blanche DuBois
acompanha­‑me até ao bairro da Exárcheia;
os gladíolos amarelos pisados à chuva
amargamente me simbolizam.
A minha lascívia púbere idolatra o actor
que introduz os principais temas da minha vida
desejo – morte
depois ele afasta-se e eu prossigo
os restantes actos no meu acanhado palco.
Até chegar à porta de casa subi tragicamente até aos meus olhos;
que me falta que choro?
Chove e eu hei-de ficar sempre só, ninfazinha desamada ao frio.

(Epílogo do ar)

A transcrição do pesadelo

Para que o pesadelo se torne poema
é preciso que o silêncio não tenha rangidos
de alma, de coração ou doutros órgãos
da química inorgânica da existência.
No silêncio permite-se que habitem côres
mas estão proibidos os contrastes gritantes:
negro com carmesim
ou com o tão cantado azul dos olhos.
Talvez um pouco de cor de cobre
terroso de folhas murchas
ou branco com manchas de café na nuca dos cães.
Logo que o pesadelo tenha deitado todo o corpo que tem a deitar
é sujeito a uma série de operações.
Com grande minúcia há que lhe extrair
a suspeita lógica
e depois sem anestesiante
transplantar-lhe algo
da bondade inata dos humanos.
A intervenção mais difícil
consiste em amputá-lo do medo.
Isso consegue-se mergulhando
sem cessar o mau sonho
na santidade da natureza.
E é então que o poema floresce;
folhinha a folhinha
flor a flor
débil a princípio, trémulo,
ergue-se da negra terra que o alimentou
e ousa.
Ousa sonhar
o antídoto da aridez
a palavra.

(Belo deserto o corpo)

A outra Penélope

Por entre as oliveiras vem a Penélope
com os cabelos apanhados à trouxe mouxe
e uma saia comprada no mercado
azul marinho com florinhas brancas.
Explica-nos que não foi por dedicação
à ideia “Ulisses”
que deixou os pretendentes durante anos
a esperar na antecâmara
dos misteriosos hábitos do seu corpo.
Ali no palácio da ilha
com os horizontes fictícios
de um doce amor
e o pássaro à janela
a captar apenas isto, o infinito,
ela pintou com as cores da natureza
o retrato de eros.
Sentado, de perna traçada,
segurando uma chávena de café
matinal, um pouco macambúzio, um pouco sorridente,
a sair quente dos edredões do sono.
A sombra dele na parede
marca deixada por um móvel há pouco retirado
sangue de antigo assassínio
aparição solitária do Karanguiózis
na tela, e por trás dele sempre a dor.
Inseparáveis o amor e a dor
como o balde e o menino na praia
o ah! e um cristal que se escapa das mãos
a mosca verde e o animal morto
a terra e a pá
o corpo nu e o lençol de Julho.

E a Penélope, que ouve agora
a música sugestiva do medo
a bateria da renúncia
o doce canto de um dia sereno
sem bruscas mudanças de tempo e tom
os complexos acordes
de uma infinda gratidão
por tudo o que não aconteceu, não se disse, não se diz,
acena que não, não, não a outro amor
não mais palavras e sussuros
abraços e dentadinhas
vozinhas na escuridão
cheiros de corpo que arde à luz.
A dor era o pretendente mais excelente
e fechou-lhe a porta.

(Belo deserto o corpo)

Regresso ao tempo sem amor

O cão foi o primeiro sinal
de que brilham vazios os espelhos cá dentro
e de que havia um espaço infinito para ele
no interior da minha história;
podia entregar-me inteira a ele
aos seus pulinhos à luz
e outras actividades caninas.

Antigamente era assim, como casinha de recém-casados,
e a alma,
no ar meio roído em que se abrigava,
onde ainda não havia cheiros e choros,
leve como escama a arrastava o futuro.

Ontem à noite tornei a perder o barco
e enquanto os filhinhos dos amigos quietos
mergulhavam no seu sono azulado,
enroupava­‑me uma serenidade semelhante à origem,
talvez porque só o silêncio
pode unir a mirrada vida
com o furúnculo da morte;
mudo o humano
vê primeiro uma depois o outro
a alastrarem na carne.

E ninguém sabe se é progresso ou imobilidade
este vazio que como lava espessa
recobre as culturas do espírito,
se as obras que se apresentam à memória
vão a subir ou a descer,
se é perda ou lucro a dedicação
e se se roeram os dentes da máquina
no momento em que íamos para novo voo.

É tão certa hoje a terra
com os ramos secos, o pouco verde,
os torrões de terra que bondosos
se descansam na terra repartindo a emoção
equitativamente entre o fim e a origem...
Mas é fim esta beleza
que sempre inacessível
aflora os humanos torturados?

É fim aquilo que desarticulado se prepara
nas câmaras escuras do tempo
e não deflagra em desesperos e pragas,
mas bate em retirada diante das explosões que se aproximam?

É fim ou outra origem
na qual hoje à noite farão círculo
as caudas dos bichos adormecidos
em redor do meu sono,
para que eu passe ligeira
para a sombra inconsciente
como se nunca tivesse gritado:
“Meu amor, perco-me se me deixares agora!”
como se nunca tivesse tido o corpo sem fim.

(Belo deserto o corpo)

ὁ μῦθος δελοῖ ὄτι

1

os factos são empilhados
diante de nós
não sejamos púdicos
os factos são cadáveres
o do rapaz das asas
os dos infantes
trespassados
pelas baionetas
o do padre nu
decapitado
diante da congregação
do seu pescoço
não cresceram lírios
o da sua filha
usada pelos soldados
antes de abatida
os de todos
os que celebravam
o casamento
e assistiram à noiva
a ser violada
pelo regimento
em formação cerrada

o folheto assegura-nos
de que acção
reproduz o mais fielmente possível
eventos reais
que tiveram lugar
na vila de Distomo
junto a Delfos
a 10 de Junho de 1944

 

 2

no final
o dramaturgo
sobe ao palco
por entre aplausos
fala
do dever do artista
para os salvar do esquecimento
para que não seja em vão
para que haja um sentido
para o seu sofrimento
e alguém lhe traz
um ramo de rosas

 

3

já não me recordo dos seus nomes
pergunto aos cadáveres
os cadáveres
não falam comigo
os cadáveres
não falam com ninguém
recusam
qualquer explicação

mas à maneira de Esopo
temos este mórbido vício
de espremer de cada dor
uma moralzinha maneirinha
de fácil arrumação
como bíblias
nas mesinhas-de-cabeceira
de um motel de má-fama
e instintivamente dizemos
a história mostra que
porque não queremos
vir dali de mãos a abanar
não
isso não pode ser
no acumular está o ganho
e quase sempre acrescentamos
algo de estúpido e obsceno
como
para que não volte a acontecer

 

 4

na sessão com o autor
alguém falou
do processo pendente
de assunção de dívidas
convertendo crimes passados
em moeda corrente
foi então que a Marialena
sentada atrás de mim
escondeu a cara entre as mãos

qual o preço de uma vida humana?

quando vence uma dívida?

qual a taxa dos juros de mora?

tudo questões
com que os mortos
não têm de se preocupar

Tadao Andõ, habitar no desconforto

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Numa entrevista à revista Philosophie Magazine em Novembro de 2017, o arquitecto Tadao Andõ revela que nunca estudou arquitectura e que não a compreende. Apesar disto, recebeu o prémio Pritzker em 1995 e é, sem qualquer dúvida, uma estrela da arquitectura mundial, considerado, é assim que o vê esta revista de filosofia, como o Corbusier feliz. Pode dizer-se que Andõ procurou, vá lá saber-se a partir de que convicções, construir edifícios não em função de uma linha, ou de linhas, estética, não preocupado com a utilidade, mas impondo uma relação horizontal entre eles e os seus habitantes. Habitar uma casa de Andõ obriga a sujeitar-se claramente às suas formas e dinâmicas.

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A entrevista à revista francesa teve como mote principal a casa Azuma. À pergunta sobre por que razão o acusam de construir edifícios onde é difícil viver, Andõ diz saber que não tem uma boa reputação e que o conforto não é importante. É preciso, acrescenta, que o habitante se pergunte a si próprio como viver nela com o mínimo de conforto. O que ele deseja é construir “espaços propícios a inspirar perspectivas ou paisagens interiores”. Daí a importância dos interstícios que relacionam as partes funcionais dos edifícios, a que chamou “espaços fundamentais das emoções”. Desta forma, assegura que “separa a arquitectura da sua função”.

E dá o exemplo da casa Azuma, entalada entre duas habitações antigas de madeira, que podia ter destruído no processo de construção.  Na abertura que conseguiu fazer, “criou uma caixa de betão”, com um pátio interior que no rés-do-chão separa a cozinha e a sala, e no primeiro andar os quartos. Para se passar de um espaço a outro é preciso atravessar o pátio e abrir o guarda-chuva se estiver a chover, nele “Circulam ar, água, vento, luz.” Uma casa sem climatização, “operando uma inversão do espaço, pondo o exterior no interior.” “Para viver num tal ambiente é preciso contar com a sua própria vitalidade, a sua energia e perseverança, aperfeiçoar-se mental e fisicamente, numa espécie de treino estóico.”  Talvez por isso tenha suscitado muitas críticas, fora do “grupúsculo que a adora”.

Por isso, não é estranho que Andõ considere a arquitectura como “a arte de modelar [agencer] o mundo graças à geometria”. Uma arte efectivada à base de betão armado, o seu material preferido, trabalhado de forma única e desenhado por linhas geométricas estratégicas. Tudo para acentuar uma singular e inorgânica percepção do tempo. Sem que haja, regressamos à sua falta de credenciais académicas (condição essencial da sua liberdade artísticas?), um manual de construção ou de reflexão. Andõ demora-se mais nas perguntas do que nas respostas, defende que há múltiplos mundos igualmente interessantes, acredita numa realidade dinâmica, considera que a vida deve ser pouco confortável.

Gosto destes seres que na linha do velho estoicismo resistem ao canto medusante da felicidade ingénua, da, como agora quase todos lhe chamam, “qualidade de vida”, forma última de um niilismo que deixa os humanos colados ao sofá, julgando que a convergência de pensamento e de acção ou o assobiar para o lado são mais vitais do que os seus contrários, acreditando que o Estado Providência é uma espécie de deus realmente e exclusivamente bondoso.


Photoautomat, nota de leitura

 
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Acaba de ser editado pela Enfermaria 6 o livro impresso de Francisca Camelo, Photoautomat, 21 poemas em cerca de 50 páginas. Fica aqui a minha nota de leitura.

O que se escreveu na contracapa – “entra, é um convite; / mas à saída leva-te contigo: / aqui só eu não sou de passagem” –, colhido no final do primeiro poema do livro, “apartamento”, pode muito bem ser a marca de sentido que acompanha a obra: Francisca Camelo dá-se, num esplendor multiforme, à avaliação do leitor a partir de acontecimentos (neste caso os imaginados têm a mesma força ontológica dos realizados) inscritos no plano da imanência e não no da transcendência estéticas, aí onde os poetas costumam produzir o caldo do fingimento cozinhando metáforas mortas. Trata-se, pois, de poesia ao serviço da biografia e não da sonhada poesia pela poesia ou, entre outras, de uma escrita performativa, meio terapêutica, meio demiúrgica (mesmo no poema “manual para a solidão”).

Por isso se misturam, numa encenação incrivelmente dinâmica, umas birkenstock com as moderníssimas torres de babel do multilinguismo, ou se escrevem cartas onde se gastam palavras para confrontar o possível e o impossível, preferindo-se, num neo-masoquismo controlado, o primeiro, mas sem rajadas de vento. Aceitar, num estoicismo realmente pessimista, que o amor é bafiento e as pernas acabam por abrir-se.

Francisca Camelo é uma espécie de jornalista auto-referencial, julgando encontrar em si os códigos de leitura do mundo. Tudo é pessoal e nada é pessoal – por exemplo, o pai é o Pai, não o intangível folião que se entretém a criar mundos de merda, mas o de todos nós, com corpo e mente imperfeitos –, e creio que gostaria que se apaixonassem como ela o faz, não porque resulte lindamente, mas porque é a lei mais favorável à vida.

Dois poemas de guerra (de Isaac Rosenberg e Keith Douglas)

ISAAC ROSENBERG
(1890, Bristol, Inglaterra – 1918, Somme, França)

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ROMPER DO DIA NAS TRINCHEIRAS

A escuridão desfaz-se.
É o mesmo Tempo druida de sempre.
Só uma coisa viva me salta à mão,
Uma ratazana excêntrica e sardónica,
Enquanto eu puxo a papoila do parapeito
Para a pôr atrás da minha orelha.
Divertida ratazana, fuzilavam-te se soubessem
Destas tuas cosmopolitas simpatias.
Agora tocaste esta mão inglesa
O mesmo farás a uma alemã
Sem tardar, bem entendido, se for do teu agrado
Atravessar o anestesiado verde que nos separa.
Parece que sorris por dentro ao passar
Por olhos fortes, impecáveis membros, arrogantes atletas,
Menos preparados do que tu para a vida,
Amarrados aos caprichos do homicídio,
Estendidos nos intestinos da terra,
Nos campos devastados de França.
Que vês nos nossos olhos
Quando guincham ferro e fogo
Arremessados pelos céus tranquilos?
Que tremor – que horrorizado coração?
Papoilas cujas raízes se enterram nas veias dos homens
tombam, e tombam constantemente,
mas está segura a minha na minha orelha –
apenas um pouco branca do pó.  

(1916)

 

KEITH DOUGLAS
(1920, Tunbridge Wells, Inglaterra – 1944, Normândia, França)

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FLORES DO DESERTO

Vivas numa ampla paisagem estão as flores –
Rosenberg estou só a repetir o que dizias –
a granada e o falcão a cada hora
matam homens e gerbos, matam 

a mente, mas o corpo pode saciar
as flores famintas e os cães latindo palavras
nas noites, de todas as coisas as mais hostis.
Mas isto não são novas. Sempre que a noite afasta 

os reposteiros dos olhos e deixa a mente desperta
olho para um lado e para outro da porta do sono
em busca da pequena moeda necessária
para comprar o segredo que não guardarei. 

Vejo homens que sofrem como árvores
ou que confundem detalhe e horizonte.
Deposita a moeda na minha língua e cantarei
coisas em que outros nunca pousaram os olhos.  

(1943)


A primeira das metáforas que equipara o ciclo da vida dos homens à vida do mundo vegetal é pelo menos tão antiga como a literatura da Europa e aparece num poema de guerra, no Livro VI da Ilíada, no diálogo entre Glauco e Diomedes, onde se lê que a geração dos homens é como a das folhas, o que pode ou não sugerir que os soldados do mundo arcaico tinham preocupações estéticas, inclinações poéticas. Paul Fussell, cujo livro The Great War and Modern Memory aparece muitas vezes classificado como uma obra de crítica literária, embora seja mais algo como uma história da cultura inglesa durante a Primeira Guerra Mundial (tempos de loucura colectiva), notava o alto grau de literacia entre as tropas inglesas, profundamente enraizadas na ampla cultura literária dos séculos imediatamente precedentes, resultado de escolaridade e hábitos de leitura bastante disseminados. Explica Fussell que os soldados liam na frente e carregavam com eles nas mochilas os clássicos da literatura inglesa, que uma porção considerável de cartas de soldados que se preservaram atestam elevados níveis de literacia e provam, para lá de toda a dúvida, que muitos deles liam todos os dias e incessantemente. Há toda uma geração de autores ingleses que surgiram ou se fizeram poetas durante a guerra (Wilfred Owen, Siegfried Sassoon, Robert Graves, Edward Thomas (um poeta absolutamente extraordinário), David Jones...), sendo que boa parte deles não sobreviveu. Quer isto dizer que há toda uma geração de autores ingleses que pereceu durante o conflicto. Uma das conclusões do livro de Fussell é a de que o choque que a guerra causou é também um choque de linguagem que torna obsoleta a expressão literária do século XIX, capaz de sonhar com heroísmo, mas não com a aniquilação sistematizada, brutal e em números nunca antes vistos imposta por meios de guerra mecanizada. A Primeira Guerra, inicialmente acolhida numa série de círculos intelectuais com genuíno entusiasmo, entre sociedades certas de que tudo duraria apenas alguns meses, viu o conflicto arrastar-se para lá de todas as estimativas, com níveis de mortalidade sem precedentes. Isto em parte explica porque é que de repente a linguagem até então utilizada para descrever guerras anteriores se tornou rapidamente desadequada para descrever a realidade. Os elos entre a literatura da Primeira Guerra e da Segunda estão amplamente estudados, mas talvez uma breve disputa entre dois poetas ingleses da geração de autores da Segunda Guerra, um deles um pacifista convicto e o outro um soldado, sirva para ilustrar esta ideia muito brevemente. Numa carta escrita a J. C. Hall (o pacifista), seu colega em Oxford, Keith Douglas (o soldado), um dos poetas que aqui traduzo, responde a uma crítica que este fizera aos seus poemas. A crítica de J.C. Hall, que de resto mais tarde se tornou o editor e o responsável pelo espólio de Keith Douglas, é mais ou menos aquela de que jovens poetas pedantes de todos os tempos se socorrem para se criticar uns aos outros. Hall escrevera a Douglas, então no Egipto, prestes a ver accção em El-Alamein, que o que ele estava a escrever não era poesia. Douglas envia-lhe uma resposta furiosa, dizendo que o que Hall queria dizer com aquilo é que os seus poemas não eram poemas líricos, que não era o mesmo que não serem poesia. Numa leitura do poema “Flores do Deserto” para o The Guardian, Carol Rumens notava que o lirismo de Douglas era de outra ordem, e mais próximo do tipo de lirismo do poeta da Primeira Guerra que aqui traduzo, Isaac Rosenberg, o que o próprio Douglas definia como um compromisso entre lirismo e cinismo cuja função era chegar a uma verdade sem concessões. É muito difícil de imaginar hoje, mas a poesia que foi escrita durante a Primeira Guerra teve um papel fundamental em elucidar a população civil sobre o horror perpetuado nas trincheiras, o que a propaganda da época tentou suprimir.

Isaac Rosenberg pertence a um mundo bastante diferente do de Keith Douglas. Douglas foi educado em Merton College, Oxford, aluno de Edmund Blunden, outro poeta da Primeira Guerra, e de muitas maneiras o percurso da sua juventude está marcado por um interesse em actividades que são próprias de soldados. Douglas não é um soldado relutante, alista-se cedo e escapa-se, no Norte de África, da segunda linha de batalha, onde tinha sido colocado, para a primeira. Rosenberg é um inglês de origem judaica, de uma família muito pobre, que treina como pintor na Slade School of Art em Londres, que hesita durante muito tempo entre a poesia e a pintura, e é um pacifista convicto, que entendia que a guerra era o palco ideal para os piores actos que um homem pode cometer. Rosenberg alista-se pelo que parece ser uma falta de escolha: o papel de soldado dava-lhe acesso a um salário. No poema de Rosenberg que aqui traduzo “Romper do dia nas trincheiras,” assim o notam todos os críticos que se debruçaram sobre o poema, quase todos os símbolos da poesia bucólica surgem e quase todos eles estão pervertidos: o romper da aurora, os campos, as flores, a quietude contemplativa. A ratazana, que é na leitura de Fussell um símbolo demónico (de daimon), encontra outro eco, menos óbvio do que a alusão directa que Douglas faz ao poema de Rosenberg no segundo verso do seu poema, na moeda cujo o referente é o óbolo colocado debaixo da língua dos mortos na Antiguidade Clássica para pagar a passagem a Caronte e nesse outro elo, menos evidente e mais terrível, entre os dois poemas e que é o do modo como a ideia de efemeridade é formulada em ambos. À distância de 27 anos, Keith Douglas repete com esta imagem da moeda debaixo da língua a ideia de efemeridade que no poema de Rosenberg é expressa pela papoila, segura na orelha mas, na verdade, já a fenecer porque colhida, no próprio corpo vivo daquele que, vivendo, pode já cantar como cabe aos mortos, com o óbolo na língua. O efeito da metáfora, o campo de forças que ela traça, é o mesmo, afinal, desse símile homérico muito antigo, a geração dos homens é efémera, como a das folhas. Homero é demasiado optimista, ele escreve que as folhas morrem e voltam florescer, e assim as gerações dos homens, Homero que não tinha ouvido falar da estupidez homicida de mechanical warfare.

O que me leva à relevância de escolher ler ou reler estes poetas soldados da Primeira e da Segunda Guerra. Matteo Salvini, Vice-Primeiro Ministro de Itália e Ministro do Interior, estava nas notícias na BBC esta semana, por um motivo ou outro que agora me escapa. Mas no final da peça sobre o dito Vice-Primeiro Ministro, a BBC entrevistava um politólogo italiano que comentava algumas afirmações de Salvini, ou do seu partido, sobre a posição pró-Europeia de Macron, ultrapassada na visão de Salvini, e simbólica de um velho mundo, sem lugar no futuro. O professor concluía que não era mais original a posição de Salvini ou de políticos como ele. Numa voz cansada, irritada e desencantada, o senhor dizia que toda a gente sabe qual é o resultado quando se erguem fronteiras entre países: o resultado é a guerra. Assim, deste modo simplíssimo, numa qualquer manhã da Europa no século XXI, durante o noticiário que a BBC emite de madrugada, quando o dia está a romper, e todos os pássaros de Inglaterra, país de melodramática memória, cantam ao nosso redor.