Pier Paolo Pasolini, "Sem ti regressava, qual bêbedo"

Fotos por Richard Avedon, 1966

Fotos por Richard Avedon, 1966

Tradução: João Coles

Sem ti regressava, qual bêbedo,
incapaz de estar só à noite
quando as cansadas nuvens se dissipam
na escuridão incerta.
Estive milhares de vezes só
desde que estou vivo, e em milhares de noites iguais
foram-me escurecidos aos olhos a relva, os montes ,
os campos, as nuvens.
A sós de dia, e depois adentro o silêncio
da noite fatal. E ora, bêbedo,
regresso sem ti, e ao meu lado
só há sombra.
E de mim longe estarás milhares de vezes,
e depois para sempre. Não sei travar
esta angústia que galopa dentro do peito;
estar só.

(1945 – 1946)

In Tutte le poesie (Mondadori)


Senza di te tornavo, come ebbro,
non più capace d’esser solo, a sera
quando le stanche nuvole dileguano
nel buio incerto.
Mille volte son stato così solo
dacché son vivo, e mille uguali sere
m’hanno oscurato agli occhi l’erba, i monti
le campagne, le nuvole.
Solo nel giorno, e poi dentro il silenzio
della fatale sera. Ed ora, ebbro,
torno senza di te, e al mio fianco
c’è solo l’ombra.
E mi sarai lontano mille volte,
e poi, per sempre. Io non so frenare
quest’angoscia che monta dentro al seno;
essere solo.

(1945 – 1946)

In Tutte le poesie (Mondadori)

Idades do pensamento

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O título é pomposo, excede o que posso dizer sobre o que representa. É, pois, um mau título, leva ao engano criando falsas expectativas. Mas é um belo título, ou pelo menos assim o considero.

Nesta injunção antagónica emerge uma parcela importante da história da humanidade, resumida na pergunta: importa mais a beleza ou a verdade? Sabemos que as vagas religiosas, depois dos politeísmo festivo e antropomorfismo descarado da Grécia Clássica, hipertrofiaram outro pilar civilizacional: o do bem.

Temos, assim, o belo, a verdade e o bem (que Platão, esse grego desnaturado de uma rara lucidez, acrescentou sem dilemas ao mundo do luxo racional e sonho antropológico a que chamou Ideias). Eu, por pudor espiritual e experiência rasteira de vida, consigo facilmente evitar olhar para a realidade com os óculos do bem (embora me interesse a “common decency” de Orwell) e coloco cada vez menos os da verdade (uma palavra que exalta mais do que harmoniza, que serve melhor estratégias políticas e religiosas do que a ciência ou as boas dialécticas argumentativas).

Restam-me, então, os do belo, e é com eles que formato agora grande parte do meu pensar. Penso para encontrar o belo em cada coisa que leio, que ouço ou que vejo. Em cada coisa que vem do exterior ou do interior. De cima (das alturas inauguradas por Platão) ou de baixo (da espontaneidade, tantas vezes considerada espúria, do dia-a-dia). Até nas ilusões restropectivas ou nessa coragem líquida que é o álcool.

O objectivo, que só recentemente consegui exprimir (é incrível como podemos sentir intensamente uma perspectiva sem o suporte das palavras), embora esteja ainda longe de qualquer explicação mais elaborada, é, como em Georges Perec, procurar simultaneamente o eterno e o efémero (“Je cherche em même temps l’éternel et l’éphémère”, escreve). Até recentemente, acreditei que só os conceitos podiam alcançar a vastidão do tempo (o universal), ficando o temporário a cargo do discurso rotineiro feito de cem palavras que todos percebem. Mas não, terá de ser um dispositivo de linguagem, verbal ou outra, que, a partir do belo, crie uma nova cabeça de Janus, de um lado olhando para o efémero, do outro para o eterno.

Genial complexidade que, paradoxalmente, só se adquire passando por uma genial simplicidade. Nada que tenha que ver com a vontade heróica, é antes uma questão de idade do pensamento. Que não segue, desenganem-se os que romantizam o envelhecimento, a idade cronológica. Trata-se de uma condição adquirida depois de habitar à vez no obscuro e no claro, sempre um pouco por acaso (“Não é meia noite quem quer”, dizia René Char em mais um dos seus belos truques retóricos, socorrendo-se da imunidade artística concedida aos poetas).

Para 2020

Paul Klee

Paul Klee

Para 2020, “torna-te o que és”!

Esta máxima, atribuída a Píndaro, está perfeitamente enquadrada na sabedoria apolínea, irmã, por exemplo, do célebre “conhece-te a ti mesmo” délfico (que o Sócrates de Platão tão bem ilustrou). Ela será retomada por Nietzsche, destacada no subtítulo do seu último livro, Ecce Homo: Wie man wird, was man ist (como vir a ser o que se é)

Para este pensador (nunca tremo ao designá-lo assim), todas as antropotécnicas são válidas para virmos a ser o que somos, não no sentido heideggeriano de uma autenticidade metafísica que substitua, e supere, as formas de ascese religiosa, mas como encontro do impessoal que até certo ponto governa a nossa pessoalidade (considerada, com muita imprecisão, o “eu”). Mas não será Nietzsche o inventor do eremitismo heróico moderno, que em vez de esvaziar a subjectividade a amplifica até ao estouro? (Übermensch = super-homem) Não, essa é apenas uma velha e desajustada forma de o ler. Se lhe prestarmos a devida atenção, partindo, por exemplo, do que escreve em Assim Falou (ou Falava) Zaratustra, o sujeito é a soma de uma ficção linguística com um dispositivo religioso para manter viva a ampla economia da culpa e do ressentimento. E mesmo quando confrontado com aquilo que pouco tempo depois dele dirá Freud (afirmava não o ter lido seriamente porque temia descobrir que o plagiava), resiste coerentemente à tentação de tudo, ou quase tudo, convergir para o eu (em Freud, deve-se escavar o inconsciente e enchê-lo de uma consciência cada vez mais plena, pessoalizar o impessoal). Em Nietzsche, o devir individual (um tornar-se que nunca se conclui, dinâmica assimptota) conduz, por linhas mais travessas do que direitas, ao “si” (Selbst), em Freud, com a ajuda do psicanalista nos casos mais difíceis, ao ego.

Bom, mas então como e para quê tornarmo-nos o que somos?

Como: buscando a base da estrutura orgânica, as forças construtivas e destrutivas (nisto, Nietzsche e Freud coincidem) que alimentam a nossa passagem por aqui (estamos, quer queiramos, quer não, sempre num devir inexorável). Não ser de nenhum lado (o nacionalismo é tão arcaico que custa acreditar na sua sobrevivência), não ter nenhum nome. Os caprichos individuais substituídos pela biologia do sistema respiratório. Venerar também o inorgânico que somos, até porque essa será a nossa condição dominante futura.

Para quê: para amarmos outras coisas para lá de nós próprios, amá-las verdadeiramente, não como fazemos agora em modo boomerang. O verdadeiro amor só pode ser incondicional, e por isso acontece apenas em relação ao distante, ao mais distante possível. Não cabe nele, com certeza, o amor paixão (invenção recente) ou o familiar. Não cabe também, embora se aumente a distância, a amizade. Nem qualquer neo-humanismo. Começa a ocorrer no amor por outras espécies e outras formas de vida. Aproxima-se quando chegamos, por exemplo, ao reino mineral (em pura contemplação). Intensifica-se se amarmos uma estrela, não porque nos ilumina, mas porque a amamos em si mesma sem querer nada em troca. Finalmente, fica pleno quando amamos o nada. Aí tornamo-nos aquilo que somos, já que as forças afirmativas que nos compõem se libertam de qualquer resquício narcisista e aceitam, sem conflitos, patentes ou latentes, que também nós somos nada, a máxima potência da impessoalidade.

Claro, com isto vou contra a epistemologia, a ética, a política, a economia... Enfrento todo o magnífico senso comum que nos governa, sobretudo nos fins de ano. Mas enfim, ninguém se dará ao trabalho de me lançar bombas incendiárias.

Para quem vir aqui uma qualquer forma de niilismo, parabéns, acertou. Mas cuidado, é o niilismo completo de Nietzsche. Que na altura combatia o grosseiro fetichismo da importância última do eu, do eu acima de tudo, a derradeira hipertrofia do eu. Alimentado e exacerbado na viagem que nos trouxe dos primórdios da consciência até aos glutões do Planeta. Como pensava Nietzsche, à morte de Deus deveria seguir-se a do homem, desde homem, para que o sobre-homem possa surgir, até porque só ele conseguirá, verdadeiramente, amar o distante. Pelo contrário, sem superação do humano, as actuais sociedades imunitárias tenderão a ser governadas pelo absurdo, cheias de querelas de egos e de sem-sentido, festa da autodestruição.

Anne Sexton, "Disse a poetisa ao analista"

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Tradução: João Coles


O meu ofício são as palavras. As palavras são como rótulos,
ou moedas, ou melhor, como um enxame de abelhas.
Confesso a minha ruína pela origem das coisas;
como se as palavras fossem contadas como abelhas mortas no sótão,
despojadas dos seus olhos amarelos e das suas secas asas.
Devo sempre esquecer como uma palavra é capaz de escolher
outra, influenciar outra, até obter
algo que pudesse ter dito...
mas que o não tenha dito.

O seu ofício é examinar as minhas palavras. Mas eu
não admito nada. Faço o meu melhor, por exemplo,
quando consigo escrever um encómio a uma caça-níqueis,
como naquela noite no Nevada: contar como o mágico jackpot veio a tilintar
com três sinos no ecrã da sorte.
Mas dissesse o senhor que isto é algo que não é,
então esmoreço e lembro-me de como senti as minhas mãos tão estranhas
e ridículas e lotadas com todo aquele
dinheiro crente.


Said the poet to the analyst

 My business is words. Words are like labels,
or coins, or better, like swarming bees.
I confess I am only broken by the sources of things;
as if words were counted like dead bees in the attic,
unbuckled from their yellow eyes and their dry wings.
I must always forget how one word is able to pick
out another, to manner another, until I have got
something I might have said…
but did not. 

Your business is watching my words. But I
admit nothing. I work with my best, for instance,
when I can write my praise for a nickel machine,
that one night in Nevada: telling how the magic jackpot
came clacking three bells out, over the lucky screen.
But if you should say this is something it is not,
then I grow weak, remembering how my hands felt funny
and ridiculous and crowded with all
the believing money.