Poema de Rocío Wittib

Inédito (s/d)

trad. António Quadros Ferro

di tu nombre y recuerda quién has sido
di que todo es igual luego que nada es lo mismo
di aquí y repítelo hasta que te abandone la deriva
di tu tonta verdad y defiéndela hasta que encuentres otra
di debajo de mi piel puede que no quede nadie
di todo aquello que tuve y llora como hacen todos
di que no te arrepientes aunque lo hayas perdido todo
di cómo he podido llegar a esto por última vez y huye
di que basta que ya no que nunca más pero vuelve a tropezar
di algo definitivo y no dejes que las palabras te maten
di había una vez y empieza de nuevo las veces que haga falta
di hasta luego y mira lo que dejas atrás pero no regreses

 

diz o teu nome e lembra-te de quem  foste
diz que tudo é igual portanto que nada é o mesmo
diz aqui e repete-o até que o desnorte te deixe
diz a tua verdade pateta e defende-a até que encontres outra
diz debaixo da minha pele talvez não haja ninguém
diz tudo aquilo que tive  e chora como toda a gente
diz que não te arrependes embora tenhas perdido tudo
diz como pude chegar a isto pela última vez e foge
diz que basta que mais não que nunca mais mas volta a tropeçar
diz algo definitivo e não deixes que as palavras te matem
diz era uma vez e recomeça as vezes que forem necessárias
diz até logo e olha para o que deixas para trás mas não regresses

 

Rocío Wittib, Buenos Aires (1989) tem poesia dispersa por diversas revistas online e em papel, como a Círculo de Poesía (México) e Cuadernos Hispanoamericanos (Espanha).  É autora  do livro  de poemas «versos para perseguir sem pressa o silêncio» (2016), publicado em Portugal pela editora Temas Originais. Os seus poemas foram traduzidos para italiano, romeno e português. Apaixonada por fotografía, é autora do blogue “Life vest under your seat”.  Actualmente vive em Pamplona.

António Quadros Ferro, Lisboa (1983) é autor dos livros de poemas «Um pouco de morte» (2009), «Alto.» (2012) e «Ou a empatia» (2015). Integra a antologia de poesia portuguesa e brasileira «Voo Rasante», publicada pela editora Mariposa Azual em 2015, e mantém, desde 2012, com Pedro Botelho e Francisco Serras, o projecto editorial Páreas Párias. Tem publicações dispersas por revistas e projectos de investigação.

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3 poemas de Rafael Mantovani

instinto

quando acordei do incêndio, no desespero só salvei
os nomes de alguns atores pornô 
pacotes de queijo ralado
um cubo fofo das palavras milagrosas
um número de likes no facebook e uma lista de tarefas
feitas pela metade, metas  
alcançadas de comunhão social 

lembro de um mal-estar os trovões uma preguiça
no entanto um bicho ferrenho ainda lutava
ainda abria todos os olhos calcava
as pernas contra o colchão molhado
ainda arrancava os pelos brancos com uma pinça
no espelho
mesmo chorando de frio
alguma coisa ainda tinha fome
na boca um pedaço de carne grande demais
um longo gemido querendo dizer ao mesmo tempo
“foda-se”, “socorro” e “obrigado”. 

 

sylvia plath cansada 

o fantasma de sylvia plath prefere comidas frias
e segura minha mão
na hora que eu chego, e antes de ir embora 

só sorri porque eu babo um pouco  
quando recito substanceless, e esquece
(por meia hora) o que já não pode
deixar de saber sobre o sol, que devora
quem tenha a coragem de lhe olhar no olho

conto pra ela que sou um gay medroso, na
internet, nem consigo ver fotos de
mutilação, cirurgia e tortura, por exemplo — 
fecho a janela na hora 

ela está com pressa mas tem paciência
comigo, como uma criança, me explica
que a internet só existe na minha cabeça 

são outros os monstros com asa
que podem entrar na sua janela, pensa
ela, mas eu não preciso saber disso ainda
(regule todo dia / a dose do seu medo) 

ela me ofereceria um chá, se tivesse
algo de gosto fraco em casa
se pudesse, me daria um abraço, um  
doce, um brinquedo. 

 

dique  

tudo só dói ou é gostoso enquanto
passa em algum  
buraco
(não dói quando contido) 

a economia dos diâmetros, o
exercício diário
balizamento inconsútil
entre o inútil e o não-inútil 

(cuidados ora medos
esperança ou burrice
prazeres ora vícios) 

tudo questão de abrir e fechar
orifícios
(como o trabalho de vida
que cabe a qualquer outro bicho). 

 

"hoje aprendi a fazer quibe"

hoje aprendi a fazer quibe
cozinhei a abóbora
misturei com o trigo
alimentei meu ócio
e a minha fome
ontem desenhei um camelo
parado num ponto de ônibus
sonhando em voltar para o deserto
amanhã reservarei meu dia para fazer planilhas
e diagramar o futuro
plantei uma semente mas me esqueci o nome da planta - sabe, é tanta coisa que precisamos guardar que acabamos esquecendo todas - ela me dizia com uma voz grave
ela fumava cigarros e comia flores
arrumei a louça bagunçada na pia
eu servia pr'aquilo
arrumar bagunças
poderia ser essa a resposta
já eu me bagunçava tanto
embora mantivesse a pose
parecia organizada
eu sabia que o batom me conferia um ar organizável
era aquele tal lance
de ter fome
a tal fome de se tornar um tudo que não sou
"esse eu falando na primeira pessoa do singular
esta pessoa singular"
esta pessoa
e insistem em nos fazer a pergunta
a mesma pergunta sem resposta
a resposta seria a resposta
o que você faz
mas você o que é você 
faz
você o que
eu eu eu
pronome
pessoal
é irredutível
"eu é qualquer coisa além
aquém qualquer alter outrem"

Perfil de Paloma Mecozzi

Soneto Oxidado

 

O céu sob o qual nasci há vinte e oito anos
Começa agora a oxidar nos ângulos
E nas horas em que não estou atento
Uma mão surripia uma ave e desloca o vento
Arranca árvores onde os olhos perdem luz
A mulher despida entre os limoeiros já pouco me seduz
E a boca febril vai abatendo o gado
Um fio de baba faz leito no prado
A mão volta puxando as cabeças velhas à janela
Para as decepar e jorrar muita aguarela
Sobre crianças que começavam a perder o gosto
À luz que sobe de um fogo posto
E que queima os touros de papel quebrado
Num céu cabalmente oxidado
 

3 poemas de Miguel Ezcurdia Royo

 

 

Sabão e Água Contra o Linho Marcado

 

No final da manhã a minha avó

subia ao terraço e estendia os lençóis

do meu sono, os sonhos presos no linho

como fantasmas distendidos, rasgados ao meio

pelo gume quente do dia, como um porco

na celebração mais antiga: avó,

hoje é dia de limpeza. És fantasma

no alto do terraço da aldeia, o lençol sobre os cabelos

brancos do vento, soltos, os teus ombros são o estendal

dos meus sonhos mais fundos, raízes que passam

de cabeça obsoleta para cabeça nascente, a minha.

 

Sabão e água contra o linho marcado

a medo: os sonhos, húmidos, para lá da ombreira,

para lá do alpendre onde faca e fantasma se quebram. A lâmina brilha

no último piso, a minha ascendência cravada

na carne, celebrada: limpeza,

cheira a sabão que seca e a lavanda.

 

Da Vide


É Sobre a Pedra que a Luz Afia o Gume

 

Recorro à metáfora violenta para aceder

ao teu corpo e coloco-o no pedestal: rasgo-o

de baixo para cima com um movimento

ritual do ventre até à boca porque

sei que é nos intestinos que metabolizas

as imagens anteriores onde a luz

não chega: eu trago os instrumentos

do fogo e incendeio os teus órgãos internos.

 

É sobre a pedra que a luz afia o gume

morno dos primeiros dias. Com as mãos separo

a carne e os dias, levo duas pedras de sílex

para atear a velha fogueira apagada.

 

Da Vide


O Sal Não Mata a Sede

 

Já não nos afogamos no mar distante.

A nossa garganta não se enche com a maré alta

e as ondas não batem contra a escarpa

da laringe erodida a golpes de água:

sem sentir o sal dos lábios

morremos na praia, deitados

tão perto do mar, como se o corpo recusasse

a sua condição motora. Mas o sol, a água: por cima do corpo

o tempo sonha no sentido contrário dos órgãos. Escapa

pela boca onde cresceu a água, mas o sal não mata a sede.

 

Da Vide